Yuliya Yurchenko Frederico Fuentes
A discussão sobre a Ucrânia costuma andar à volta das tensões internacionais mas é preciso olhar para o que aconteceu no interior deste país entre o referendo de 1991, no qual a independência foi votada esmagadoramente, incluindo na Crimeia e no Donbass, e a invasão russa, explica a investigadora socialista ucraniana.
A socialista ucraniana e autora de Ukraine and the Empire of Capital, Yuliya Yurchenko, discute com Frederico Fuentes, da Green Left, os principais fatores domésticos que marcaram a política ucraniana desde a independência até à invasão russa.
No teu livro, insistes em olhar para os fatores domésticos para compreender como é que a Ucrânia chegou ao ponto em que está hoje. Porquê? Podes esboçar estes fatores?
Muita da discussão sobre a Ucrânia anda à volta das tensões internacionais – entre a NATO e a Rússia ou entre os Estados Unidos e a Rússia – com a Ucrânia a ser vista como uma espécie de cobertor que é puxado em diferentes direções.
Mas precisamos olhar para o que aconteceu no interior da Ucrânia para compreender como é que passámos de um país que votou esmagadoramente para se tornar independente em 1991 – incluindo na Crimeia e no Donbass – ao “referendo” para anexar a Crimeia e as “repúblicas” separatistas do Donbass em 2014.
As dinâmicas domésticas são extremamente importantes para compreender como os políticos locais irresponsáveis e agindo no seu interesse próprio criaram as condições que tornaram possíveis as intervenções estrangeiras.
Nos anos 1990, emergiram grupos oligárquicos em diferentes partes da Ucrânia. Nessa altura, a Rússia estava enfraquecida economicamente e politicamente desestabilizada. A influência da Rússia na região também estava enfraquecida. Isto abriu espaço para que o capital doméstico da Ucrânia crescesse sem grande intervenção estrangeira.
No final dos anos 1990, um importante bloco de capital industrial de uso intensivo de energia tinha emergido no leste com ligações económicas fortes ao regime de Putin, devido à dependência das importações de gás.
Destes diferentes grupos oligárquicos emergiram líderes que competiam pelo poder político. Um deles era Viktor Yanukovych – ligado ao capital industrial do Donbass no leste – que concorreu nas fraudulentas eleições de 2004 que levaram à Revolução Laranja e outra vez em 2010 contra o então presidente Viktor Yushchenko.
As suas campanhas eleitorais de 2010 estavam concebidas para ganhar a maioria dos votos que fosse no leste (Yanukovych) quer fosse no ocidente (Yushchenko). Este enquadramento político divisório das suas campanhas eleitorais foi central para solidificar a ideia de “duas Ucrânias”.
A Rússia desempenhou algum papel no fomento dessa ideia e, se sim, qual?
A Rússia começou a promover a ideia do Russky Mir (“o Mundo Russo”) [que engloba todos os russófonos] anos antes dos acontecimentos de 2013‒14 através de meios de comunicação social locais, particularmente na Crimeia e no Donbass, que têm a maior quantidade de populações etnicamente russas na Ucrânia.
As ambições imperiais da Rússia foram revigoradas com a queda da União Soviética. Podemos ver isto nos discursos de Putin nos quais se refere à Ucrânia como sendo pouco mais do que uma província da Rússia – uma província sem subjetividade política própria, cultura e língua. O fascismo de Putin é construído sobre uma narrativa não de diferença mas de mesmidade: de que somos todos o mesmo povo que fala a mesma língua e, assim, temos de ser todos do mesmo país.
Ao compreendermos as relações históricas de extermínio e de exclusão da língua, cultura e literatura ucraniana por parte da Rússia, começamos a entender porque é que tantas pessoas na Ucrânia são bilingues ou apenas falam russo e não falam ucraniano muito bem.
Esta visão de um destino partilhado era parte das reivindicações da Rússia sobre o Donbass mas há também uma componente económica. Há muitas indústrias no Donbass – e no sul da Ucrânia – que estão profundamente integradas na indústria russa, fazendo componentes para o seu exército e outras linhas de produção sobre as quais a Rússia não quer perder o controlo.
Até 2014, a Rússia tentou uma doutrinação leve para manter a sua influência e controlo na Ucrânia: mas quando isso falhou virou-se para a intervenção militar.
E qual foi o papel das iniciativas da Ucrânia para integrar a União Europeia?
Sob Yushchenko, houve um processo de aproximação Ucrânia-União Europeia no qual um acordo de livre comércio foi assinado. Em 2013, o governo de Yanukovych estava prestes a assinar o Acordo de Livre Comércio Profundo e Alargado que tinha ajudado a esboçar. Mas Yanukovych, à última da hora, recusou assiná-lo devido à pressão da Rússia e de alguns oligarcas locais. Se Yanukovych tivesse conseguido manter uma cooperação próxima com a Rússia e se tivesse entregue o verdadeiro poder de decisão à Rússia, talvez a guerra subsequente e a invasão não tivessem acontecido. Mas os ucranianos não concordavam com isso.
E foi isso que desencadeou os protestos de Maidan?
O protesto começou com a recusa de Yanukovych de assinar o acordo, mas o verdadeiro pontapé de saída de Maidan foi na noite de 30 de Novembro, quando Yanukovych enviou a polícia para espancar os manifestantes na praça principal de Kiev.
Depois disso, os protestos tornaram-se massivos, com mais de um milhão de pessoas a juntar-se em Kiev, uma cidade de poucos milhões de pessoas. Os manifestantes passaram a exigir a demissão de Yanukovych e eleições imediatas, com protestos a espalhar-se a praças em toda a Ucrânia, incluindo Donetsk, Lugansk, Odessa e a Crimeia.
Sondagens realizadas cerca de uma semana depois do início dos protestos revelaram que as principais razões pelas quais as pessoas participavam era a brutalidade policial, a ausência de lei, a corrupção e a privação social e económica. O acordo com a União Europeia surgia em sétimo ou oitavo lugar da lista.
Maidan não foi um golpe planeado pelo Ocidente, foi uma expressão de dissidência e de frustração. Foi um movimento de protesto que estava a fermentar há décadas. Houve muitos protestos nos anos anteriores por causa de problemas sócio-económicos, contra promotores imobiliários predadores, contra a corrupção, contra a impunidade policial. As pessoas estavam fartas de tudo isso.
Contudo, de Maidan emergiu aquilo a que te referes como uma “cleptocracia neoliberal autoritária fascizante”…
Para se perceber porque é que falo numa cleptocracia neoliberal autoritária fascizante na Ucrânia pós-2014, é preciso compreender quem era Petro Poroshenko e como se tornou presidente.
Poroshenko participava na política ucraniana mainstream desde há décadas. Era um oligarca que tinha tinha toda a espécie de cargos importantes antes da sua eleição em 2014.
Quando ele e outros oligarcas e políticos discursaram aos manifestantes exigindo a demissão de Yanukovych foram vaiados porque eram vistos como parte do mesmo regime oligárquico de cleptocracia neoliberal que as pessoas queriam que acabasse.
Depois da fuga de Yanukovych, Putin disse que o novo presidente interino e governo ucranianos eram ilegítimos, que tinha havido um golpe, e que portanto a Rússia tinha de libertar o povo da Ucrânia desta “junta”. Putin avançou então para anexar a Crimeia e os seus lacaios começaram uma guerra no Donbass.
De acordo com a constituição da Ucrânia, o presidente eleito é também o comandante-chefe das forças armadas e apenas estas podem conduzir o país para a guerra. Os oligarcas, em particular Poroshenko, usaram esta conjuntura para dizer: “olhem, percebemos que toda a gente quer mudar as pessoas do governo; compreendemos a vossa frustração. Mas temos uma guerra no país e precisamos de agir rapidamente. Precisamos de alguém que tenha experiência e saiba como coordenar os militares. Precisamos pronto de alguém que assuma as rédeas, então precisamos de eleger um presidente na primeira volta para organizar as forças armadas para defender o Donbas”.
Foi este o discurso que o fez eleger na primavera de 2014. Não teria conseguido vencer se a guerra no Donbass não tivesse começado. O resultado final foi que os resultados da revolução foram confiscados por estes oligarcas.
É também importante notar que no seguimento do sangue que foi derramado em Maidan, forças de direita altamente desagradáveis começaram a organizar grupos de auto-defesa para proteger os manifestantes. Junto com cidadãos de todos os tipos formaram batalhões de voluntários que foram combater para o Donbass. A mensagem amplamente espalhada nestes grupos e que eu ouvi pessoalmente era: “depois de expulsarmos os russos, vamos lidar com os escroques do governo”.
Poroshenko procurou absorver alguma da retórica nacionalista, patriótica dos batalhões de voluntários na sua campanha eleitoral de 2019, tentando lucrar com a palavra de ordem “exército, língua, fé” e o seu apoio a “estes heróis”. Custou-lhe a presidência.
Na verdade, a frustração das pessoas não tinha passado. Em vez disso, o que havia era uma sensação de que agora não era a altura para desestabilizar o governo porque havia uma guerra.
Como se enquadra Zelensky nisto?
Mais de 40% das pessoas que votaram em Zelensky em 2019 fizeram-no como forma de voto de protesto contra Poroshenko e a sua fascização autoritária. Aqueles que pintam os ucranianos como nazis devem tomar nota disto: mesmo quando o país estava envolvido numa guerra na qual a Rússia dizia que a Ucrânia não era uma nação, os ucranianos não queriam a direita no governo.
Mas, claro, há uma direita que agita certos tipos de bandeiras e diz que não queremos quaisquer outras etnias e há uma direita que apoia as políticas económicas neoliberais. Zelensky e o seu partido, o Servo do Povo, aderiram ao culto neoliberal da desregulação e de menos Estado.
Apesar de Zelensky ser muito popular agora, o que se esquece é que a sua popularidade estava muito em baixo imediatamente antes da invasão porque ele tinha sido eleito por causa de reivindicações populares mas não tinha cumprido nenhuma delas.
A desregulação não funciona em tempo de paz, quanto mais em tempo de guerra. O Estado precisa de intervir. Estes defensores do mercado livre vão precisar de aprender rapidamente e trabalhar afincadamente para criar um Estado que garanta que aqueles que pagaram o preço mais alto nesta guerra colham o maior benefício da reconstrução do país pelo qual estão a lutar.
Se assim não for, o governo corre o risco de que as pessoas procurem terminar o que não terminaram em 2014 – mas agora com armas nas mãos.