Zbigniew Marcin Kowalewski
Publicado originalmente em polonês em Le Monde diplomatique – Edycja polska n. 2 (174) de março-abril de 2022, em francês em Inprecor n. 695/696 de março-abril de 2022 e em português em Movimento. Crítica, Teoria e Ação, n. 25-26 de abril-maio de 2022. Traduzido do polonês para o francês por Jan Malewski e para o português por Pedro Micussi.
Nesta guerra crucial de escala global, a nação ucraniana está lutando para preservar sua independência, alcançada apenas 30 anos atrás, após séculos de dominação e russificação implacável. Ela deveria fazer dela uma variação da nação russa “trinitária” imaginada na era czarista e reivindicada por Vladimir Putin. A classe dominante russa está lutando pelo renascimento de um imperialismo russo em declínio que, sem controle sobre a Ucrânia, corre o risco de desaparecer da cena histórica.
Em 1937, em uma recepção organizada por ocasião do 20º aniversário da Revolução de Outubro, Joseph Stalin brindou “à destruição de todos os inimigos – eles e suas famílias, até o último!”. Conforme observado em seu diário por uma testemunha ocular, Georgi Dimitrov, ao fazer este brinde, Stalin explicou que os czares “fizeram uma coisa boa: eles reuniram um enorme estado, chegando até Kamchatka”, e “nós, os bolcheviques, consolidamos e fortalecemos um Estado, uno e indivisível”. Portanto, “quem procura separar uma parte ou uma nacionalidade dela é um inimigo, um inimigo jurado do Estado e dos povos da URSS. E vamos destruir tal inimigo, mesmo que seja um velho bolchevique; destruiremos todos os seus parentes, sua família” [1].
Em todos os tempos, o imperialismo russo baseou-se nas ideias de “reunir terras russas” e construir “uma Rússia única e indivisível”. Esse imperialismo sempre foi – e continua sendo – tão específico quanto a própria formação social da Rússia foi e permanece específica durante as sucessivas fases históricas de seu desenvolvimento, começando com o Czarado Russo (1547-1721). Vladimir Lênin, quando teorizou o “imperialismo capitalista moderno”, apontou que ele era fraco na Rússia, enquanto o “imperialismo feudal-militar” era mais forte lá [2] . Chamá-lo de feudal era uma simplificação exagerada.
Sem dúvida, a partir de meados do século XVI, do tempo de Ivan, o Terrível, a formação social russa era essencialmente uma combinação de dois modos de exploração pré-capitalistas diferentes. O primeiro, feudal, baseava-se no fato de que os latifundiários extorquiam o trabalho excedente dos camponeses na forma de renda. O outro, tributário, tinha como modelo o Império Otomano, então o mais poderoso [3], e se baseava na extração pela burocracia estatal de impostos dos camponeses.
Na União Soviética, o rigor era o dogma stalinista do desenvolvimento unilinear da humanidade, com apenas cinco etapas. O modo de exploração tributário não tinha lugar ali, especialmente porque podia ser associado (superficialmente, mas não sem razão) ao domínio da burocracia stalinista. Alguns historiadores soviéticos, sem transgredir formalmente esse padrão, habilmente contornaram a proibição chamando-a de “feudalismo de estado” ou feudalismo “oriental”, diferente do feudalismo “privado” e “ocidental”. A partir de meados do século XVII e quase até a abolição da servidão em 1861, a terceira forma de exploração – e a mais terrível para o campesinato – foi a escravidão, incluindo a trata de pessoas, para a qual a servidão russa degenerou.
Um produto excedente mínimo
Nenhum desses modos de exploração representava (ao contrário dos hábitos discursivos supostamente marxistas) um modo de produção, porque não se subordinava formalmente ou realmente às forças produtivas e, portanto, não garantia seu desenvolvimento sustentável e sistêmico. No entanto, é com base nesses modos de exploração que o Estado russo, tão particular, foi formado. Como Ruslan Skrynnikov, um dos principais estudiosos da opritchnina de Ivan, o Terrível, que desencadeou e se afogou no primeiro Grande Terror da Rússia, observou, “algumas de suas práticas continham, como que em embrião, todo o desenvolvimento subsequente da monarquia absoluta burocrático-nobre” [4]. Na verdade, não só dela, mas de todos os regimes despóticos russos até os séculos XX eXX.
Outro historiador contemporâneo, Leonid Milov, desenvolve teses muito importantes sobre as peculiaridades do desenvolvimento histórico da sociedade russa. A partir do estudo das condições naturais e climáticas de produção, ele desenvolveu uma concepção chave da “história da Rússia como uma sociedade com um produto excedente total mínimo” [5]. As razões para isso são: em comparação com outras sociedades agrícolas, uma temporada agrícola muito curta na Rússia central, determinada pelo clima, que dura apenas do início de maio ao início de outubro (na Europa Ocidental, os camponeses não trabalhavam nos campos apenas em dezembro e janeiro) e a predominância de solos pobres em húmus.
Isso teve como consequências, “até a mecanização deste tipo de trabalho, uma baixa fecundidade e, portanto, um baixo volume do produto excedente total da sociedade”, que „criou nesta região as condições para a existência, durante séculos, de uma sociedade agrícola relativamente primitiva”. Portanto, “para obter um resultado mínimo, era necessário concentrar o trabalho em um período de tempo relativamente curto. A fazenda camponesa individual não conseguiu atingir o grau indispensável de concentração de esforços de trabalho durante as temporadas de trabalho agrícola objetivamente existentes”, de modo que sua fragilidade “foi compensada por quase toda a história milenar do estado russo pelo grande papel da comunidade camponesa” [6].
Unidade dos contrários
O trabalho excedente dos camponeses só poderia ser extorquido – em grande parte ou mesmo inteiramente – à custa do trabalho necessário para sua própria reprodução, isto é, por métodos de exploração absoluta (em vez de exploração relativa, baseados no aumento da produtividade do trabalho). Isso não foi possível sem impor-lhes o mais severo regime de servidão possível, especialmente porque, dadas as condições gerais de produção, era necessária uma forte organização comunal do trabalho. A necessidade de “otimizar o tamanho do produto excedente total” – para aumentá-lo de acordo com os interesse dos aparelhos de Estado e da classe dominante – era premente, mas “no caminho para essa ‘otimização’, ou seja, de a necessidade objetiva de intensificar a exploração dos camponeses, estava essa mesma comunidade camponesa, bastião da coesão local e meio de resistência camponesa” [7].
Disso surgiu “uma espécie de unidade dos contrários: o que contrabalançava a existência inevitável da comunidade era um contrapeso na forma da variante mais brutal e severa da dependência pessoal de cada membro desse organismo”. A impossibilidade de superar essa contradição sem um desenvolvimento considerável das forças produtivas, que as relações de exploração pré-capitalistas não permitiam, significava que o papel do Estado consistia em “criar uma classe dominante monolítica e poderosa, capaz de extirpar ou neutralizar os mecanismos de defesa da comunidade agrária no processo de exploração cotidiana do campesinato”.
Resumindo, segundo Milov: “a inevitabilidade da existência da comunidade, condicionada por suas funções produtivas e sociais, acabou por dar vida aos mais severos e brutais mecanismos para extrair o máximo possível do produto excedente. Daí o surgimento do regime de servidão, que foi capaz de neutralizar a comunidade como base da resistência camponesa. Por sua vez, este regime de servidão só se tornou possível devido ao desenvolvimento das formas mais despóticas de poder estatal – o regime autocrático russo” [8]. Isto é o que uniu a classe dominante.
Onde começa a periferia
Ao mesmo tempo, porém, “a natureza extremamente extensiva da produção agrícola e a impossibilidade objetiva de intensificá-la fizeram com que o principal território histórico do Estado russo não pudesse suportar o crescimento da densidade populacional. Daí a necessidade constante, durante séculos, da população migrar para novos territórios em busca de terras cultiváveis mais férteis, condições climáticas mais favoráveis para a agricultura, etc” [9]. Além disso, “os processos migratórios andaram de mãos dadas com o fortalecimento do Estado absolutista, pronto para controlar e defender grandes áreas do país” e, portanto, com a constituição de enormes forças armadas, embora “o tamanho extremamente pequeno de o produto excedente total ter criado objetivamente condições muito desfavoráveis para a formação da chamada superestrutura sobre os elementos básicos” [10].
Esta centenária expansão colonial, militar e estatal em direção ao sul, sudeste e leste abarcou gradualmente vastas áreas, territórios periféricos, habitados por povos “alógenos”, sempre em expansão e países vizinhos cada vez mais distantes, vítimas, todos eles, das conquistas militares. Essa expansão foi acompanhada por várias centenas de anos de luta do Czarado de Russia e depois do Império Russo (1721-1917) pelo acesso a portos livres de gelo nos mares a oeste e a leste.
Daí as perguntas legítimas que são tão difíceis de responder corretamente: “Quando começou a colonização russa – com a ocupação de Kazan etnicamente estrangeiro ou de Novgorod etnicamente próximo?” A República de Novgorod caiu sob os ataques do exército de Moscou em 1478 e o Canato de Kazan em 1552. “Onde se situam as fronteiras da metrópole russa, onde começam as colônias russas, e como as distinguir?”. Pois eles têm sido tão móveis… “As fronteiras da Rússia se expandiram tanto antes da ascensão do czarismo quanto durante a era czarista com tal rapidez que a própria distinção entre ‘externo’ e ‘interno’ era fluida e indeterminada” [11].
Conquistas militares-coloniais
A formação histórica da Rússia foi moldada no processo de conquistas militares-coloniais do campo e do campesinato russo e de guerras camponesas, de fato anticoloniais, provocadas por elas, colonizações internas e externas, conquistas, saques e opressões coloniais de outros povos . Como bem coloca Alexander Etkind, “tanto em suas fronteiras distantes quanto em suas profundezas sombrias, o Império Russo era um imenso sistema colonial” [12]. Ao contrário da mitologia russa, a conquista de um país tão grande como a Sibéria não “estendeu o território moscovita até a fronteira com a China”, mas transformou a Sibéria em uma colônia típica. No entanto, tornou-se comum perceber a Sibéria como uma parte inseparável da Rússia, o mesmo que mais tarde a Polônia, Lituânia, Finlândia, Cáucaso, Bucara e Tuva – entre outros.
Alguns historiadores russos, dando assim a sua contribuição teórica para a construção da “ideia russa” dominante e, como é evidente hoje, atemporal, muito apropriadamente chamaram esse fenômeno de “autocolonização da Rússia”: as sucessivas terras que conquistou não se tornaram suas colônias, mas foi a própria Rússia que “se colonizou” [13], porque era sem limites (e permaneceu tão em sua ideologia dominante, de forma afirmada ou oculta). Depois de tomar a Ucrânia da margem esquerda do Dnieper no século XVII, a participação da Rússia na partição da República das Duas Nações (Polônia-Lituânia) nas últimas décadas do século XVIII permitiu-lhe assumir a maior parte da margem direita da Ucrânia – um total de 80% das terras ucranianas. Isso provou ser um ganho estratégico fundamental, atingindo profundamente a Europa e determinando o escopo e o caráter eurasiano do Império Russo.
Enquanto a nobreza russa era uma ordem dominante, a terra nunca se tornou inteiramente propriedade privada dos nobres. Isso teria sido contrário aos interesses primordiais desse Estado imperial, na construção do qual nenhuma classe social desempenhou um papel tão importante quanto ele mesmo – seus aparatos e sua burocracia. Não foi apenas a construção de um colossal exército ao custo de 25 anos de serviço militar camponês e imensas infra-estruturas militares e civis financiadas pelo trabalho forçado de centenas de milhares de outros camponeses, pertencentes tanto ao Estado quanto aos latifundiários, mas também brigadas inteiras de mestres enviados para trabalhos de fato forçados em diferentes partes do país. Além disso, como diz Milov, “a máquina estatal foi forçada a fazer avançar o processo de divisão social do trabalho e, sobretudo, a separação entre indústria e agricultura” [14], contra os modos de exploração dominantes que dificultavam esse processo.
Servidão industrial
Consequentemente, “a participação do Estado na criação da indústria no país contribuiu para um salto gigantesco no desenvolvimento das forças produtivas, embora o empréstimo de ‘tecnologias ocidentais’ pela sociedade arcaica no século XVII e XVIII tenha tido umefeito social monstruoso: surgiu uma massa de trabalhadores sempre amarrados às fábricas (os “submissos em perpetuidade”), o que estimulou o deslizamento da sociedade para a escravidão” [15]. O enorme complexo militar-industrial russo, cujo núcleo era a metalurgia urálica, foi estabelecido não com base no desenvolvimento das relações capitalistas, mas no âmbito das relações feudais e tributárias [16].
É verdade que o capital floresceu, mas era pré-capitalista e impedia o desenvolvimento do capitalismo – “o capital mercantil desenvolvia-se não em profundidade, não pela transformação da produção, mas em largura, aumentando o raio das operações”, ao sair “do centro para a periferia, seguindo o camponês que se dispersava e, à procura de novas terras e de isenções fiscais, penetravam em outros territórios” [17]. Baseados na coerção não econômica, os modos de exploração pré-capitalistas dominaram o modo de produção capitalista na Rússia até a revolução de 1917, não apenas na agricultura, mas também na indústria, muito depois da reforma de 1861.
Quando a social-democracia russa se constituiu em partido, o trabalho de cerca de 30% dos trabalhadores industriais ainda era trabalho escravo, não trabalho assalariado, que esta social-democracia, incluindo o Iskra , associando a indústria (ou seja, as forças produtivas, não as relações de produção) ao capitalismo, não viu. “Mesmo no início do século XX, mais da metade das empresas industriais do núcleo industrial principal (a siderurgia) não eram capitalistas no sentido estrito do termo”, afirma Mikhail Voeikov. Os métodos pré-capitalistas de extração do produto excedente do trabalho dos produtores diretos que ainda prevaleciam “não permitiam ao capital nacional realizar a acumulação necessária”, razão pela qual “o capital estrangeiro era tão forte” [18].
Onde o capital já dominava na economia russa, foi praticamente imediatamente grande capital e houve rapidamente processos de monopolização.
Multiplicidade de revoluções
Na Rússia, portanto, o “imperialismo capitalista de tipo moderno” está em vias de nascer, mas está “envolvido” - escreveu Lênin pouco antes da revolução de 1917 – “numa rede particularmente densa de relações pré-capitalistas” - tão densa que “na Rússia, de modo geral, predomina o imperialismo militar e feudal” [19]. O fundamento desse imperialismo é “o monopólio da força militar, de um território imenso ou de uma particular facilidade para pilhar os povos ‘alógenos’, a China, etc.”, isto é, os povos não russos dentro da própria Rússia e os povos dos países vizinhos. Ao mesmo tempo, escreve Lênin, ele “em parte complementa, em parte substitui o monopólio do capital financeiro contemporâneo, moderno” [20]. Praticamente todos os exegetas dos escritos de Lênin sobre o imperialismo não mencionam essa proposição teórica, que é crucial para o estudo da formação russa [21].
O colapso desse emaranhado do imperialismo “militar e feudal” russo com o imperialismo capitalista não foi obra de uma única revolução, mas de várias revoluções convergentes e divergentes, formando alianças e colidindo violentamente. A Revolução Russa foi uma delas. No centro do império, ela era operária e camponesa; na periferia colonial, baseava-se em minorias e assentamentos urbanos russos e russificados. Tinha um caráter colonizador, assim como o poder russo dos conselhos que estabeleceu, como demonstrou o bolchevique Georgi Safarov em sua obra outrora clássica sobre a “revolução colonial” no Turquestão. “Pertencer ao proletariado industrial da colônia czarista era um privilégio nacional dos russos. É por isso que, também aqui, a ditadura do proletariado assumiu desde os primeiros momentos uma aparência tipicamente colonizadora” [22].
Mas entre os povos oprimidos, a Revolução Russa também desencadeou revoluções nacionais. A mais extensa territorialmente, a mais violenta, a mais dinâmica e a mais imprevisível delas foi a revolução ucraniana. Sua explosão, e ainda mais o impulso que ela tomou, foram inesperados. Uma nação camponesa, sem “seus” latifundiários e “seus” capitalistas, com uma fina camada de pequena burguesia e intelectualidade e uma linguagem proibida, não parecia destinada ou capaz de realizá-la. Desde que o exército russo aniquilou Sitch de Zaporíjia, a fortaleza dos cossacos livres, em 1775, o povo ucraniano reivindicou pela primeira vez sua independência. Assustada com a revolução social que levou os bolcheviques ao poder em Petrogrado e Moscou, a Rada Central dos partidos pequeno-burgueses ucranianos proclamou- -a em Kiev e imediatamente se envolveu em uma guerra com eles.
Revolução nacional ucraniana
Uma parte dos bolcheviques ucranianos – embora a porcentagem de ucranianos entre os membros do Partido Comunista (bolchevique) da Rússia na Ucrânia fosse insignificante – também queria uma Ucrânia revolucionária, soviética como a Rússia, mas independente. Mas sobretudo, na esquerda radical, o Partido Comunista Ucraniano (borotbista), separado dos bolcheviques e formado pela ala esquerda do Partido Socialista-Revolucionário Ucraniano e por parte da ala esquerda da social-democracia ucraniana, queria a independência nacional. Aliado aos bolcheviques, esse partido tinha uma base social incomparavelmente mais ampla que a deles.
A aliança dos borotbistas com os bolcheviques foi muito difícil. O chefe do governo bolchevique estabelecido após a segunda ocupação de Kiev pelo Exército Vermelho em 1919, Christian Rakovski, vindo da Bulgária, proclamou assim que “declarar a língua ucraniana como língua do Estado seria uma medida reacionária de que ninguém precisa” porque em geral “a questão ucraniana e a Ucrânia não são tanto um fato real quanto uma invenção da intelectualidade ucraniana” [23]. Ele não estava sozinho entre os marxistas: Rosa Luxemburgo afirmava que o nacionalismo ucraniano era “farsa ridícula”, “nada mais que um simples capricho, uma frivolidade de algumas dúzias de intelectuais pequeno-burgueses” [24]. Acreditando que “a Ucrânia é para a Rússia o que a Irlanda é para a Inglaterra”, que era uma colônia e que seu povo oprimido deveria obter a independência nacional, Lênin foi, por outro lado, uma exceção, mas disse isso publicamente apenas uma vez [25].
À política do governo Rakovsky sobre a questão nacional foi adicionada uma política de ultra-esquerda sobre a questão agrária que, ao contrário do decreto bolchevique sobre a terra, não visava o parcelamento das grandes propriedades de terra em benefício dos camponeses, mas na transformação dessas propriedades em fazendas coletivas. As requisições estatais de grãos e o “comunismo de guerra” em geral colocaram lenha na fogueira. Tudo isso resultou em 1919 em uma forte onda de revoltas camponesas antibolcheviques (eram 660 delas, grandes e pequenas), que separaram a Ucrânia da Hungria e impediram que o Exército Vermelho Ucraniano viesse em auxílio da República Húngara dos Conselhos, quando era sua única esperança de sobrevivência.
Na própria Ucrânia, esses levantes abriram caminho para a ofensiva das tropas da Guarda Branca do general Anton Denikin em direção a Moscou [26]. É verdade que o próprio Rakovski rapidamente tirou sérias conclusões das desastrosas políticas de seu governo, mas o fez somente após seu colapso.
Comunistas-independentistas
Em grande parte da Ucrânia de Dnieper e no sudeste deste pais, a luta contra a ocupação pela Guarda Branca Russa repousava sobre os ombros de movimentos partidários e insurgentes, liderados pelos comunistas-borotbistas, que eram o partido mais forte na clandestinidade, e pelos anarco-comunistas de Nestor Makhno. Após a derrota de Denikin, o Exército Vermelho pela terceira vez consecutiva garantiu na Ucrânia o poder aos bolcheviques. Só então, em fevereiro de 1920, eles decidiram abandonar sua abordagem doutrinária da questão agrária e distribuir a terra aos camponeses. Embora em minoria, eles fizeram dos borotbistas seus parceiros de coalizão minoritários muito submissos de várias maneiras.
Lênin estava com muito medo de que, uma vez terminada a guerra civil e a intervenção estrangeira, houvesse uma revolta armada dos borotbistas contra os bolcheviques se estes se opusessem à independência da Ucrânia soviética. Ele exigiu de seus companheiros: “A maior cautela possível em relação às tradições nacionais, o mais estrito respeito pela igualdade da língua e cultura ucraniana, a obrigação de todos os funcionários públicos de aprender a língua ucraniana [27]. Porque ele sabia muito bem que se você “riscar tal comunista, você descobrirá o chauvinista grão-russo” [28].
Ele declarou publicamente: “É evidente e geralmente admitido que só os operários e camponeses da Ucrânia, no seu Congresso dos Sovietes de Toda a Ucrânia, podem decidir e decidirão a questão de fundir a Ucrânia com a Rússia”, em uma única república soviética, “ou se a Ucrânia permanecerá uma república independente e autónoma”, unida por uma união (federação) com a Rússia, “e, neste último caso, precisamente que ligação federativa se deve estabelecer entre esta república e a Rússia”. Não é por essa razão, declarou ele, que os comunistas se dividiriam. Ele não aceitou uma confederação. Porque a nação ucraniana era historicamente uma nação oprimida pela Rússia, ele explicou: “Nós, comunistas grão-russos, devemos transigir nas nossas divergências com os comunistas bolcheviques ucranianos e os borotbistas quando essas divergências se referem à independência estatal da Ucrânia, às formas da sua aliança com a Rússia e, de modo geral, à questão nacional” [29].
“Essa vitória vale algumas boas batalhas”
No entanto, é exatamente o contrário que acontece, tendo este último dado lugar ao primeiro nestas áreas – e isto sob a ameaça de “liquidação”. A portas fechadas, Lênin postulou uma Ucrânia “independente no momento”, “em estreita federação” com a Rússia e um “bloco temporário com os borotbistas”, bem como “propaganda simultânea em favor da fusão completa” da Ucrânia e da Rússia em um estado unitário. Ele rapidamente acrescentou que “a luta contra a palavra de ordem de uma união tão próxima quanto possível” com a Rússia é “contrária aos interesses do proletariado”, de modo que na Ucrânia “toda a política deve visar sistemática e implacavelmente a liquidação dos borobistas no futuro próximo”, e ele exortou que “os borotbistas sejam acusados não de nacionalismo, mas de tendências contra-revolucionárias e pequeno-burguesas” [30].
A “liquidação” não ocorreu porque, seja pela causa da revolução socialista internacional ou simplesmente porque perceberam que uma arma havia sido colocada em suas cabeças, eles próprios dissolveram seu partido [31]. Como explicou Lênin, “Em vez de uma insurreição dos borotbistas que se tornou quase inevitável, os melhores elementos borotbistas se juntaram ao nosso partido, sob nosso controle, com nossa aquiescência, enquanto os outros desapareceram da cena política. Essa vitória vale algumas boas batalhas” [32].
À luz das batalhas ideológicas levadas a cabo com impressionante perseverança por Lênin pelo direito dos povos à autodeterminação até a separação, e de sua real política neste campo, a maneira como ele realmente concebeu esse direito inerente ao seu pensamento permanece, se não um mistério, pelo menos algo totalmente inexplorado. Toda literatura ou literatura marxista que se apresenta como tal dedicada à sua interpretação desse direito tem um caráter exegético, apologético ou epigonal. Ela esconde a cabeça na areia diante do fato histórico de que em todos os lugares nas periferias coloniais da Rússia onde o poder de seu partido se impôs, ou mais precisamente onde o Exército Vermelho o afirmou, essa lei não foi executada e não havia como tentar aplicá-la sem ser acusado de ser contrarrevolucionário.
Contradição no coração da revolução
A revolução na Rússia não destruiu o imperialismo russo. Com o capitalismo, derrubou o “imperialismo capitalista moderno” e removeu a base pré-capitalista (feudal e tributária) do imperialismo militar. Mas não arrancou as condições para a reprodução do monopólio russo não econômico que o constituía, isto é, “o monopólio da força militar, de um território imenso ou de uma particular facilidade para pilhar os povos” das periferias internas e externas da Rússia. Na medida em que a revolução abarcou a periferia e ali se espalhou, entre os povos oprimidos, na forma de revoluções nacionais, forçou o retrocesso desse monopólio. Ao mesmo tempo, reproduziu-o na medida em que se espalhou do centro para a periferia no modo de conquista militar. Essa contradição, que estava no coração da revolução russa, era inerente a ela e impossível de resolver dentro de seu próprio quadro. Muito agora dependia de qual lado da contradição prevaleceria.
Após o colapso do Império Russo, Finlândia, Estônia, Lituânia, Letônia e Polônia se separaram sucessivamente dele, e após a derrota desastrosa sofrida na guerra de 1920 contra a Polônia, a Rússia Soviética perdeu parte da Ucrânia (e da Bielorrússia). Se a Ucrânia soviética iria ou não se separar foi decisivo para a sobrevivência do imperialismo russo.
Quando a União Soviética tomava forma como organismo estatal em 1922-1923, os bolcheviques ucranianos falavam abertamente do fato de que “os preconceitos de grande potência, nutridos pelo leite materno, haviam se tornado um instinto entre muitos camaradas”, porque “na prática, nenhuma luta contra o chauvinismo de grande potência foi travada em nosso partido” [33]. Rakovski opôs-se então ferozmente a Stalin, à frente daqueles que exigiam a independência da Ucrânia e a criação de uma união de estados soviéticos independentes [34]. Eles perderam, mas sua derrota foi então incompleta.
As transformações do imperialismo russo
A direção central do Partido Bolchevique, liderada por Stalin, contrastou às aspirações de independência nacional com a política de nacionalização linguística e cultural das repúblicas não russas. Inesperadamente para seus promotores moscovitas, na Ucrânia esta política se transformou em uma extensão da revolução nacional, que esta política reviveu e notavelmente revitalizou. Durou quase 10 anos, até 1932. O extermínio pela fome (Holodomor) e o esmagamento da Ucrânia pelo terror [35] foram ambos um ato constitutivo da burocracia stalinista separada da burocracia termidoriana que reinava até então (e logo, durante o Grande Terror, seria exterminada pela nova burocracia stalinista) e um ato de renascimento do imperialismo russo, desta vez burocrático-militar [36].
Este último foi consolidado pela unificação das terras ucranianas (e bielorrussas) após a divisão da Polônia por Hitler e Stalin, e pela anexação dos Estados Bálticos, realizada em 1939 e confirmada em 1944, durante a guerra vitoriosa contra o imperialismo alemão. A gigantesca pilhagem do potencial industrial da zona soviética de ocupação da Alemanha, bem como a dominação sobre os estados do Leste Europeu, mantidos politicamente em xeque pela permanente ameaça de intervenção militar, conformaran definitivamente esse renascimento do imperialismo russo [37].
A queda repentina e totalmente inesperada da URSS em 1991 revelou a natureza desse Estado, criado com base no Grande Terror de Stalin. O que a Ucrânia não conseguiu durante o colapso do Império Russo, foi capaz de alcançar durante o colapso da União Soviética. Ela então conseguiu se separar, como 14 outras das maiores nações não russas. Ao declarar sua independência nacional, desferiu um golpe decisivo no imperialismo militar-burocrático russo.
Restaurado sobre as ruínas da URSS, o capitalismo russo permanece dependente do mesmo monopólio não econômico do qual dependiam os modos de exploração do passado e, como eles, é desnaturado por essa dependência. O Estado russo protege a propriedade privada capitalista, mas ao mesmo tempo a restringe porque está sujeita à sua coerção, assim como a fusão de seu aparato com os grandes capitais restringe e distorce a concorrência entre eles. Foi assim que, sob o peso desse monopólio não econômico, na Rússia tomaram forma tanto o capitalismo oligárquico de Estado quanto una nova variedade do imperialismo, desta vez militar-oligárquica.
O imperativo da reconquista
No entanto, esse próprio monopólio sofreu uma degradação enorme, embora extremamente desigual. A Rússia manteve seu “monopólio da força militar” na medida em que, após o colapso da URSS, permaneceu a maior potência nuclear do mundo com um enorme exército. Por outro lado, seu “monopólio de um território imenso ou de uma particular facilidade para pilhar” seus próprios e outros povos declinou profundamente.
Como Zbigniew Brzezinski observou após o colapso da URSS, as fronteiras da Rússia retrocederam dramaticamente “para os limites de onde emergiu no passado já distante. No Cáucaso, deteve-se nas fronteiras do início do século XIX, na Ásia Central, naquelas fixadas em meados do mesmo século, e – ainda mais dolorosamente – recuou no ocidente as dimensões alcançadas no final do reinado de Ivan, o Terrível, por volta de 1600”. Pior de tudo, “sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império na Eurásia. E mesmo que tentasse recuperar tal status, o centro de gravidade seria então deslocado, e esse império essencialmente asiático estaria fadado à fraqueza”. Brzezinski estava certo quando escreveu que “para Moscou, por outro lado, restaurar o controle sobre a Ucrânia - um país de cinquenta e dois milhões de pessoas com recursos abundantes e acesso ao Mar Negro - é garantir os meios para se tornar novamente um poderoso estado imperial, estendendo-se pela Europa e Ásia” [38].
É por isso que o imperialismo russo embarcou na reconquista da Ucrânia, onde seu próprio destino está em jogo.
Notas
1 I. Banac (ed.), The Diary of Georgi Dimitrov, 1933-1945, Yale University Press, New Haven-Londres 2003, p. 65.
2 V. Lênin, “La faillite de la IIe Internationale-5”: https://www.marxists.org/francais/Lênin/ works/1915/05/19150500f.htm
3 C.A. Нефедов, “Реформы Ивана III и Ивана IV: османское влияние”, Вопросы истории, n. 11, 2002, p. 30-53.
4 Р.Г. Скрынников, Царство террора, Наука, São Petersburgo 1992, p. 512.
5 Л.В. Милов, Великорусский пахарь и особенности российского исторического процесса, РОССПЭН, Moscou 2001, p. 7.
6 Ibid., p. 554-556.
7 Ibid., p. 556.
8 Ibid., p. 481-482, 556.
9 Ibid., p. 566.
10 Л.В. Милов , “Особенности исторического процесса в России”, Вестник Российской Академии наук, vol. 73, n. 9, 2003, p. 777. Guerra na Ucrânia 23
11 A. Эткинд , Д. Уффельманн, И. Кукулин, “Внутренная колонизация России: Между практикой и воображением”, em: A. _Эткинд, Д. Уффельманн, И. Кукулин (ред.), Там, внутри. Практики внутренней колонизации в культурной истории России, Новое литературное обозрение, Moscou 2012, p. 10, 12.
12 A. Etkind, Internal Colonization. Russian Imperial Experience, Polity, Cambridge-Malden 2011, p. 26.
13 Ibid., p. 61-71; A. Etkind, “How Russia ‘Colonized Itself’. Internal Colonization in Classical Russian Historiography”, International Journal for History, Culture and Modernity vol. 3 nº 2, 2015, p. 159-172.
- Л.В. Milov, op. cit ., p. 777.
15 Ibid., p. 777.
16 В.В. Алексеев, „Протоиндустриализация на Урале”, em: Экономическая история России XVII-XX вв.: Динамика и институциональносоциокультурная среда, УрО РАН, Ecaterimburgo 2008, p. 63-94.
17 L. Trotsky, A história da revolução russa, vol. 3, Senado Federal, Brasília 2017, p. 56.
18 М. Воейков, „Великая реформа и судьбы капитализма в России (к 150-летию отмены крепостного права)”, Вопросы экономики, n. 4, 2011, p. 135, 123, 136.
20 V. Lênin, “O socialismo e a guerra (A atitude do POSDR em relação à guerra)”, https://www. marxists.org/portugues/lenin/1915/guerra/01.html; ibid., “O imperialismo, fase superior do capitalismo”, https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap6.htm 21 V. Lênin, “O imperialismo e a cisão do socialismo”, https://www.marxists.org/portugues/ lenin/1916/10/imperialismo.htm Guerra na Ucrânia 27
21 Cf. Z.M. Kowalewski, “Impérialisme russe”, Inprecor, n. 609/610, 2014, p. 7-9.
22 Г. Сафаров, Колониальная революция (Опыт Туркестана), Госиздат, Moscou 1921, p. 72. Esta obra fundamental para o desenvolvimento do pensamento anticolonial, banida e condenada ao esquecimento eterno por Stalin, só foi reeditada em 1996 no Cazaquistão. Internacionalmente, ela permanece quase completamente desconhecida até hoje.
23 P. Христюк, Замітки і матеріали до історії української революції 1917-1920, vol. IV, Український соціологічний інститут, s.l. 1922, p. 173.
24 R. Luxemburgo, A Revolução Russa, Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo 2017, p. 73.
25 Citado em П. Кравчук, “Під проводом благородних ідей (6)”, Життя і Слово (Toronto), n. 26 (183), 1969, p. 18. O texto deste discurso foi perdido e é conhecido apenas pela imprensa da época. Ver R. Serbyn, “Lénine et la question ukrainienne en 1914. Le discours ‘séparatiste’ de Zurich”, Pluriel-débat, n. 25, 1981, p. 83-84. Guerra na Ucrânia 29
26 Cf. Z.M. Kowalewski, “For the Independence of Soviet Ukraine”, em M. Vogt-Downey (ed.), The USSR 1987-1991: Marxist Perspectives, Humanities Press, New Jersey 1993, pp. 235-255.
27 В.И. Ленин, Неизвестные документы. 1891-1922 гг., РОССПЭН, Moscou 2000, p. 306.
28 V. Lênin, “VIIIe Congrès du PC(b)R. Conclusions après la discussion du rapport sur le programme du parti”, https://www.marxists.org/francais/lenin/works/1919/03/d8c/vil19190300-05c8.htm
29 V. Lênin, “Carta aos operários e camponeses da Ucrânia a propósito das vitórias sobre Deníkine”, https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/12/28.htm Guerra na Ucrânia 31
30 B. Ленин, Неизвестные документы, p. 306; idem, „Проект резолюции об украинской партии боротьбистов” e „Замечания к резолюции Исполнительного Комитета Коммунистического Интернационала по вопросу о боротьбистах”, Полное собрание сочинений, vol. 40, Политиздат Moscou 1974, p. 122, 152.
31 As circunstâncias e o curso da autodissolução da PCU(b) foram examinados por Д.В. Стаценко, “Самоліквідація осередків Української комуністичної партії (боротьбистів) у 1920-му році (на прикладі Полтавщини)”, Iсторична пам’ять. Науковий збірник, vol. 29, 2013, p. 58-70.
32 V. Lênin, “Conclusions après le rapport du Comité central”: https://www.marxists.org/francais/ lenin/works/1920/04/d9c/vil19200400-04c9.htm 32 Movimento
33 Estas são as palavras de Mykola Skrypnyk, um dos principais líderes dos bolcheviques ucranianos. Двенадцатый съезд РКП(б). 17-25 апреля 1923 года. Стенографический отчёт, Политиздат, Moscou 1968, p. 571-572.
34 Г. Чернявский, М. Станчев, М. Тортика (Лобанова), Жизненный путь Христиана Раковского. 1873-1941. Европеизм и большевизм: неоконченная дуэль, Центрполиграф, Moscou 2014, p. 165-191.
35 A análise mais precisa deste evento foi fornecida por A. Graziosi, “The Soviet 1931-1933 Famines and the Ukrainian Holodomor: Is a New Interpretation Possible, and What Would Its Consequences Be?”, Harvard Ukrainian Studies, vol. 27 n. 1/4, 2004/2005, p. 97-115.
36 Cf. Z.M. Kowalewski, “Ouvriers et bureaucrates. Comment les rapports d’exploitation se sont formés et ont fonctionné dans le bloc soviétique”, Inprecor n. 685/686, 2021, p. 35-61.
37 Cf. D. Logan [J. van Heijenoort], “The Eruption of Bureaucratic Imperialism”, The New International, vol. XII n. 3 (105), 1946, p. 74-77.
38 Z. Brzezinski, The Grand Chessboard. American Primacy and Its Geostrategic Imperatives, Basic Books, Nova York 1997, p. 88, 82.