Bruno Cava Rodrigues
A resposta simples é: sim.
Isto não significa que vai necessariamente ganhar ou que a vitória é inevitável. Reparar o gerúndio: "está ganhando". É uma tendência em que já se falava, mas que foi evidenciada neste mês pelos êxitos das contra-ofensivas.
Muita gente antes declarava acreditar na vitória da Ucrânia, mas o grau dessa crença aumentou na medida em que os ucranianos provaram que podem repelir os invasores em contra-ataques de grande escala. No final do artigo de Habermas, "Guerra e indignação", de 29.04.22, ele escreveu da importância da "formulação cautelosa da meta que a Ucrânia 'não perca' esta guerra". Essa cautela habermasiana já ficou para trás, pois se fala por todo lado na Ucrânia vencer. Antes se tinha clareza sobre como a Rússia e Putin não estavam ganhando, mas agora se fala abertamente na vitória ucraniana, como um horizonte plausível de eventos e não apenas desejado ou retórico.
A filosofia de William James diferencia fé de crença. Crença não é algo íntimo, mas disposição para agir. Sem dúvida, é um elemento subjetivo, mas está ligado à ação e intervenção no mundo, como uma relação estabelecida com o leque de potencialidades do real. Se aumenta a crença na vitória, aumenta a disposição para agir de um certo modo, o que apenas reforça a tendência objetiva, como um circuito de ação/percepção. Por isso a mudança nas coordenadas subjetivas é tão crucial, porque consolida determinado esquema sensório-motor que está impelindo a Ucrânia a se defender e repelir o invasor.
Do lado dos invasores, a mudança da percepção também aconteceu. A narrativa putinista propagandeava à população e aos apoiadores que a derrota ucraniana era apenas questão de tempo. A narrativa era coesa, unitária, estanque, sobre a inexorabilidade da vitória russa: "todos os objetivos estabelecidos serão alcançados". Mesmo os putinistas fora da Rússia mantinham a pose férrea que se tratava apenas de questão de tempo para a Ucrânia roer a corda e aceitar a paz nos termos russos. Era inexorável. Isto ocorria até mesmo à esquerda do espectro político-ideológico, ressoando com a mitologia neoestalinista da Grande Guerra Patriótica: a grande marcha, a jornada gloriosa, de vitória em vitória até o clímax da bandeira vermelha sobre o Reichstag. Apenas ao inserir uma derrota incontornável nesse caminho se quebrou o contínuo emotivo que vinha guiando os textos e as apreensões filoputinistas.
Quem conferir agora os noticiários na Rússia, vai ver como não é somente a mudança no tom, como havia ocorrido já nas retiradas de Kyiv. O próprio cerne da narrativa está parando de funcionar, forçando os atores a se reposicionarem discusivamente. Há um momento de atordoamento, ninguém sabe exatamente o que pode ou o que deve falar, como se orientar no novo cenário subjetivo. Nestas semanas, a unidade da narrativa putinista se perdeu.
Na Rússia, uma parte mais governista está colocando a culpa nos militares do país. Bastante injustamente, pois eles se lançaram nesse imbróglio por decisão política, arbítrio do próprio Putin, que, aliás, continuou interferindo no nível operacional, agravando os problemas. Outra parte da opinião pública está colocando a culpa principal nos Estados Unidos/OTAN, justificando que a Rússia está perdendo para um "poderoso exército ocidental". Particularmente, eu não vi nenhum porta-aviões entrando no Mar Negro ou mísseis Tomahawk alvejando infraestrutura militar da Rússia. Esse é um procedimento compensatório, pois retira a parte de mérito dos ucranianos ao efetivamente planejar e executar o contra-ataque e vencer em campo. Um feito inimaginável para quem reduzia o país vizinho a uma terra atrasada de gente débil.
Está aparecendo ainda uma terceira fração da opinião pública, ainda minoritária, porém preocupante para o regime, que começa a questionar a razão da guerra. Começa a inquirir sobre o grau de perdas humanas, o sacrifício da juventude do país, os duradouros custos políticos e econômicos que a população russa vai ter de suportar. Em suma, começa a discutir em público sobre se está valendo a pena e qual o nível de responsabilidade de Putin em ter lançado o país nessa situação. Isso soa bastante parecido com o questionamento doméstico sobre Napoleão depois das derrotas militares de 1813, quando se desvinculou a ideia que Napoleão era a França, ao contrário, não era, pois Napoleão estava precipitando a França à desgraça.
A erosão da narrativa putinista na Rússia é séria e deve se agravar caso antes do inverno ainda haja outras derrotas significativas (por exemplo, se Kherson for libertada). Alguns putinistas fora da Rússia decaíram no mais rasteiro negacionismo, que embute um mecanismo defensivo. Compensa-se a sensação de impotência, a inexistência de alternativas críveis para se engajar na mudança da situação, por meio da duplicação de um mundo encantado em que permaneceríamos poderosos e justos. Em certo sentido, a radicalidade da crença do negacionista é aparente, pois esconde a descrença prática na capacidade de mudar as coisas. Menos do que perda do contato com a realidade (como diria uma velha tradição platônica até Freud), todo negacionismo é uma forma de relação objetiva com a realidade. É a forma da má consciência, o que Nietzsche chamava de niilismo passivo, que não é improdutivo, mas produtivo ao seu modo. A passividade em mudar as coisas contrasta com a fervilhante mirabolação da imaginação ressentida.
Outros putinistas mais realistas, os "mibloggers", apostam na radicalização do esforço de guerra. A operação especial militar deveria passar à fase da mobilização geral, com a escalada dos meios de resposta e da natureza dos alvos, com maiores ataques à população civil e emprego de armas não-convencionais. Seria uma saída à Ludendorff de converter a guerra limitada em 'totale Krieg'. Estes elementos internos são mais perturbadores, porque lançariam a Rússia (e o mundo) numa espiral de desastres irreversíveis. Conseguiriam eles converter o crescente sentimento nacional de derrota em uma narrativa ainda mais agressiva e revanchista? A dita "humilhação" sofrida na Ucrânia estaria levando o governo a deslizar sobre uma linha suicidária, ou seja, se vamos perder, que tudo se acabe? Estas perguntas estão em aberto. Eu diria que: não parece ser o caso, mas é preciso agir de alguma maneira para contribuir que não aconteça.
O que está parecendo é que quanto mais a Ucrânia vence a Rússia no campo de batalha e vai liberando os territórios e cidades, mais a base emocional do putinismo se enfraquece. E não a tendência contrária, isto é, o acirramento da vontade de guerrear. Falava-se que Luhansk ou a cidade de Mariupol somente seriam retomadas com uma terceira guerra mundial. Mas a possibilidade disso acontecer está mais representável nas cabeças dos invasores e dos invadidos do que nunca. Falava-se que a Rússia jamais sairia da Crimeia, mas já há discussões especializadas, em termos de deterrência e gestão de escaladas, sobre o que fazer quando ela começar a ser libertada. Tudo isso está acontecendo enquanto a Rússia parece estar esgotando seu poder de reagir devido à falta de unidade política, que está se esboroando. Putin e o putinismo nunca estiveram numa situação tão difícil.