Hladnik Milharčič Ilya Boudraitskis
Nesta entrevista, o ativista da esquerda russa Ilya Boudraitskis fala da máquina de propaganda militarista russa e da visão de Putin sobre a Ucrânia.
Antes da invasão russa da Ucrânia, Ervin Hladnik Milharčič do jornal esloveno Dnevnik entrevistou Ilya Boudraitskis, historiador, analista político e militante do Movimento Socialista Russo. Este fala do poder e da máquina de propaganda nacionalista/militarista de Putin a partir do ponto de vista da oposição de esquerda. Boudraitskis publicou em janeiro o livro “Dissidentes entre Dissidentes” em que analisa a esquerda russa depois da queda da União Soviética.
Várias das considerações que tece estarão datadas por terem sido emitidas antes do presidente russo ordenar a intervenção militar. São contudo um documento importante sobre a forma como se via a tensão a partir da Rússia.
Como é que os meios de comunicação russos apresentam as tensões na fronteira russo-ucraniana?
Os meios de comunicação oficiais russos, incluindo todos os canais de televisão, são controlados pelo Kremlin. Os outros meios de comunicação social são quase inexistentes. Sobre a Ucrânia, estes meios de comunicação estatais têm vindo a utilizar uma linguagem de guerra desde 2014. Nos últimos meses, não houve mudanças nessa forma de falar sobre o assunto. Continua a ser a mesma narrativa.
O que quer dizer com linguagem de guerra?
Debates intermináveis sobre a profunda divisão entre o nosso país e o Ocidente, com o qual estamos em conflito histórico. O uso de uma retórica militar extremamente agressiva. Ouvimos falar das nossas bombas, tanques, aviões e outras armas. Ouvimos dizer que podemos destruir os EUA em dois ou três minutos, ou que podemos facilmente ganhar novamente uma guerra mundial. Esta tornou-se a linguagem comum dos meios de comunicação oficiais.
Que efeito tem isso na opinião pública?
Boa pergunta. No nosso país, para ajudar as crianças a adormecerem, contamos-lhes a história do Pedro e do lobo. Conhece esta história, não é verdade? O rapaz correu pela aldeia a gritar "lobo, lobo, lobo" para chamar a atenção para si próprio. A aldeia inteira foi agitada várias vezes. Quando finalmente o lobo chegou à aldeia, já ninguém lhe prestava atenção. Pelo menos desde 2014, os meios de comunicação oficiais têm falado incessantemente e num tom muito fantasioso sobre um conflito inevitável com a Ucrânia, que nunca se materializou. Agora querem fazer soar o alarme. Nas últimas semanas, os meios de comunicação oficiais têm tentado fazer saber que a situação se tornou muito grave. Que este confronto militar é real. No entanto, o público não percebe esta mensagem como algo diferente. A reação comum a esta notícia é a de dizer: Sabemos que estamos em conflito com a Ucrânia, sabemos que estamos em conflito com os Estados Unidos, "estão sempre a dizer-nos isso, é a normalidade".
Nenhuma emoção em particular?
É mais complicado do que isso. Por um lado, as pessoas veem-no como uma continuação da estratégia habitual de apontar o dedo às bizarrias das elites governantes. A linguagem do conflito é tão familiar que já não há comoção. Mas, ao mesmo tempo, há receios crescentes da possibilidade de uma verdadeira escalada. O medo da guerra está lentamente a fazer o seu caminho.
Este mal-estar também é percetível nos meios de comunicação oficiais?
Não, de acordo com estes já ganhámos. Mas as pessoas estão cada vez mais preocupadas. Não é apenas o meu sentimento. O medo da guerra tem sido sempre o segundo maior medo na sociedade depois da saúde e das preocupações que a acompanham devido ao funcionamento das instituições públicas e da forma como cuidam dos indivíduos. Contudo, as sondagens de opinião recentes mostram que pelo menos 60% da população teme a possibilidade de um conflito armado e que este medo é mais forte do que as preocupações de saúde relacionadas com a pandemia. Estes dois elementos estão presentes simultaneamente na consciência coletiva. As pessoas estão tão habituadas à retórica militarista que não a levam demasiado a sério, mas, por outro lado, há uma preocupação crescente. Pela minha parte, penso que o medo provém dos acontecimentos a que assistimos no ano passado. Um medo ligado à crescente repressão do Estado, à crescente violência que o acompanha e ao clima de ansiedade que gera. Eu diria que esta questão está no cerne do pensamento político das massas sobre a nossa situação. Mas é preciso ter em conta que na nossa sociedade não há reações políticas sérias, não há manifestações, não há protestos. Não há mais manifestações massivas de descontentamento, também não há ocupação de ruas ou praças. Já não há nada.
Como é que Putin conseguiu isto?
Graças a um ano de ataques diretos contra os núcleos da oposição. O regime político é cada vez mais repressivo. Após a detenção de Aleksei Navalny, líder do partido da oposição Rússia do Futuro, e a dispersão dos protestos que se seguiram, a opinião pública foi silenciada. Toda a oposição encontra-se agora numa situação muito deprimente. No ano passado, fomos alvo de uma repressão total. Todas as estruturas de Alexei Navalny foram declaradas organizações extremistas e os seus colaboradores foram considerados extremistas. Qualquer pessoa que expressasse apoio a Navalny podia ser presa.
A mais antiga organização de direitos civis, a Memorial, reconhecida em 1989, foi dissolvida por uma decisão do Supremo Tribunal porque supostamente era abrangida pela Lei dos Agentes Estrangeiros. Simbolicamente, isto foi muito destrutivo: a mais antiga organização de direitos humanos tornou-se subitamente ilegal. Também visam todos os meios de comunicação social independentes com agressões extremas. A Lei dos Agentes Estrangeiros pode ser usada contra qualquer pessoa. Já não existe um único meio de comunicação social independente na Rússia que não possa ser acusado de ser uma agência estrangeira. A acusação é um aviso. Isto significa que eles podem ser liquidados em qualquer altura, tal como a Memorial o foi. Grande parte da repressão está relacionada com o que está atualmente a acontecer na fronteira com a Ucrânia. Queriam ter a certeza de que não haveria surpresas desagradáveis, oposição, reações ou resistência na frente interna.
E o cidadão comum só está familiarizado com a versão oficial?
Mais ou menos, sim. As pessoas estão a ser assim psicologicamente preparadas para a guerra. Pode-se seguir a televisão estatal e acreditar na propaganda. Não é difícil. Por outro lado, sobreviver em caso de conflito é uma questão completamente diferente. Nesta área, a situação já é muito diferente, porque vivemos num país muito pobre, que tem visto a qualidade de vida deteriorar-se nos últimos anos, dando a impressão de um país em declínio em todas as áreas. Só no caso da situação – já de si má – se deteriorar muito rapidamente e as pessoas não virem uma saída, poderíamos esperar uma mudança e exigências mais prementes para uma política diferente. No entanto, até agora, nada disto está à vista.
Por outro lado, a situação é realmente pouco clara. O discurso oficial mantém sistematicamente essa ambiguidade. Por um lado, utilizam uma linguagem militarista agressiva e intransigente. Por outro, falam também do desejo de paz, de conversações entre a Rússia, os Estados Unidos e os países europeus. Atribuem esta tensão à histeria anti-russa dos meios de comunicação social ocidentais e à política que lhe está subjacente. Dizem que a Rússia não tem planos para atacar, que não planeia qualquer invasão armada, que o exército está apenas a fazer manobras normais em território soberano russo e que no Ocidente estão a criar o pânico devido aos seus próprios problemas. Muitas pessoas interrogam-se sobre o que se passa realmente. Será que nós devemos realmente preparar-nos para a guerra, ou esta é a enésima tempestade de propaganda sem futuro? Este dilema é-nos familiar. Serão estas apenas ondas sucessivas de desinformação ou será que o perigo de um confronto militar está realmente próximo?
Os Estados Unidos e alguns países europeus enviam efetivamente equipamento militar para a Ucrânia. Isto chamou-lhe a atenção?
Sim, isso é claro. O medo da guerra tem duas faces. As pessoas têm naturalmente medo de conflitos militares. Se o Ocidente der um verdadeiro apoio militar à Ucrânia, poderá haver uma grande guerra. Por outro lado, há um forte receio de sanções económicas adicionais, o que poderia minar a economia já atingida. Pode ser que o Ocidente considere realmente a Ucrânia como um país no qual possa finalmente enfrentar a Rússia em todas as frentes e que se torne um campo de batalha. Mas é difícil lançar um debate um pouco mais sério sobre esta questão na Rússia. Os meios de comunicação oficiais são controlados e não há qualquer possibilidade de se envolver numa análise séria da situação e num confronto de opiniões. Estão ocupados com propaganda, a informação é secundária. Existem ainda alguns meios de comunicação social liberais da oposição. Ainda existem mas são cada vez menos e constantemente sob a terrível pressão do Estado. Ainda existe um certo sentimento de revolta entre a população. Mas o regime continua a enviar dois sinais contraditórios.
A mensagem oficial é que, ao contrário do Ocidente, a Rússia quer negociações e não planeia a guerra, mas está pronta para tudo. Neste quadro, é a Ucrânia – abastecida pelo Ocidente – que é o agressor. Apesar de toda a retórica beligerante, os meios de comunicação oficiais transmitem a mensagem do Kremlin de que esta batalha será travada através de conversações e que a guerra será evitada.
Como justificam esta mensagem?
Recordamos a experiência de 2014, quando o exército russo ocupou a Crimeia e a reação do Ocidente foi sobretudo retórica. A Crimeia foi anexada à Rússia, houve protestos e agitação, foram impostas sanções, mas não ocorreu a ninguém tentar devolver Sevastopol e Yalta à Ucrânia através da guerra. O Kremlin pode apontar para o Mar Negro e dizer que estabeleceu aí a sua autoridade sem ser seriamente perturbado por ninguém.
Os meios de comunicação liberais estão a tentar contar uma história diferente, mas estão confusos. A oposição política também está confusa. Ninguém sabe qual é o conteúdo secreto das conversações entre a Rússia e o Ocidente. A maioria dos cidadãos tem a impressão de que as relações entre a Rússia e o Ocidente foram completamente quebradas. A rutura, contudo, não aconteceu no ano passado, mas muito antes. Aqueles que vivem nas grandes cidades e viajam para outros países sabem que as relações têm sido más desde há muito tempo. A situação é clara. A Embaixada dos EUA em Moscovo não concede vistos a cidadãos russos há três anos. Se quiserem ir para a América, devem primeiro ir para outro lugar, como Zagreb ou Liubliana, e solicitar um visto para lá. Começou nos dias de Donald Trump e continua sob a direção de Joe Biden.
Mas, se houver guerra, pelo que se lutará? Em 2014, os ucranianos cederam a Crimeia sem luta. O exército ucraniano nem sequer disparou um tiro para o ar. O objetivo do conflito é claro para si?
Essa é a questão principal, não é? Estamos a lutar pelo quê? Não há nenhum dilema para as autoridades russas. No último ano, tornou-se claro que o acordo de Minsk não está a funcionar. Em Donetsk, a situação encontra-se num impasse. A ideia de que as Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk poderiam ser utilizadas para controlar o governo ucraniano entrou em colapso. Putin pensou que encontraria no Donbass um pilar através do qual podia construir uma política para a Ucrânia. O acordo deveria pelo menos impedir a cooperação da Ucrânia com a Nato, mas falhou. Entretanto, realizaram-se eleições na Ucrânia, e rapidamente se tornou claro para Putin que seria impossível chegar a um acordo com o novo presidente, Volodymyr Zelensky. Quando ele foi eleito em Maio de 2019, havia alguma esperança no Kremlin de que poderiam chegar a um acordo com ele sobre a normalização das relações. Mas então ele revelou-se, em muitos aspetos, um nacionalista ainda mais duro do que o seu antecessor, Petro Poroshenko. Putin teve de encontrar uma saída para o impasse do acordo de Minsk, que não tinha futuro. Decidiu mudar o centro de gravidade de Donbass para toda a Ucrânia. Começou a perguntar-se que lugar tinha sido reservado para a Ucrânia nos planos da Nato. Será a Ucrânia pelo menos um país neutro, ou um aliado militar aberto? Ele queria desviar a atenção da situação congelada em Donbass e começar a falar de relações interestatais e globais.
Como o fez?
Muito simplesmente. Começou a deslocar tropas para a fronteira. A ideia era forçar o Ocidente a reagir. Putin dessa forma faz uma pergunta muito simples ao Ocidente: até que ponto consideram seriamente apoiar militarmente a Ucrânia no caso de um conflito militar? Ou ainda mais simplesmente: entrarão em guerra se eu invadir o país? Ele queria ver o que acontecia nas fronteiras da União Europeia em caso de intervenção militar. Fez a pergunta da forma que preferia.
Putin gosta de desafiar o seu adversário. Põe-se à sua frente deles, olha-os nos olhos: "Bem, o que vais fazer? Vais atacar, ou vais apenas falar"? Quem vai recuar primeiro? Ele fez isto na Crimeia em 2014, e depois em Donbass. Não se tratava realmente de preparar uma invasão, ele queria forçar as negociações. Mas a resposta do Ocidente em Janeiro passado foi surpreendente para Putin. Ele vê o Ocidente como um território onde vivem os brigões que continuam a pregar os direitos humanos e não estão preparados para um verdadeiro conflito. São sempre os primeiros a recuar antes de serem desafiados.
Mas nas últimas semanas, o tom mudou no Ocidente, primeiro nos Estados Unidos, depois no Reino Unido, e depois em muitos outros países. Putin deve agora tomar nota que o Ocidente aceitou o seu desafio e começou a desafiá-lo. Primeiro, a diplomacia começou a dizer que Putin já era o agressor e que ele tinha atravessado as fronteiras. Putin estava apenas a mover tanques ao longo da fronteira e o Ocidente ficou com a impressão de que ele já tinha ocupado a Ucrânia. A política, a diplomacia e os meios de comunicação social semearam o pânico no Ocidente, afirmando que a Rússia está prestes a lançar uma grande ofensiva na Ucrânia. Agora estão a enviar armas para a Ucrânia e a falar em intervir por si próprios. Putin não esperava isto.
Quer dizer que Putin viu todo este movimento de tanques como um instrumento de negociação?
É o que eu penso. Quando a Rússia prepara uma invasão, normalmente tem objetivos militares claros à sua frente. Quais poderiam ser os objetivos militares de um ataque frontal à Ucrânia? Tudo o que se ouve são respostas políticas. Por um lado, o desejo de mudar o governo em vigor em Kiev. Por outro lado, há o desejo de criar uma atmosfera propícia a uma guerra híbrida, ou seja, o desejo de dividir a aliança ocidental, dividir a Ucrânia em duas e assumir o controle político de uma parte. Suponha-se que correntes políticas favoráveis poderiam emergir de uma intervenção militar. Mas como levar a cabo a parte militar da operação? Ocupar Kiev? Para ganhar o quê? Um sucesso militar traria mais problemas do que a Rússia já enfrenta. O resultado só poderia ser a confusão mais total. Mesmo a ocupação de grande parte da Ucrânia não daria à Rússia qualquer garantia de segurança em relação ao Ocidente. Haveria resistência, seria necessário um grande número de tropas e qualquer estabilidade poderia ser esquecida. Os sentimentos nacionalistas ucranianos seriam reforçados e a Rússia perderia definitivamente o país.
Atualmente, o governo russo também subestima a popularidade da Rússia na Ucrânia. Sonha em ter uma maioria da população a falar russo e não ter problemas em aceitar a Rússia como a sua pátria. Trata-se de pura ilusão. Pela minha parte, não vejo um plano militar claro para a invasão, nem qualquer grande preparação do país para a guerra. O único efeito prático da guerra seria o de desestabilizar a situação na Rússia.
Mas talvez Putin pense que a Rússia está ameaçada?
Sim. Penso que há muita ansiedade em relação ao poder. Eles estão convencidos de que os Estados Unidos e os seus aliados europeus também querem uma mudança de regime na Rússia. Sentem que a Rússia está rodeada de países hostis. E Putin declarou publicamente em numerosas ocasiões que não reconhece as fronteiras criadas depois de 1989. Segundo ele, as fronteiras são o resultado de um erro histórico, que ele considera uma tragédia. Desde 1991, a Rússia tem perdido territórios que Putin diz pertencer-lhe historicamente. A Ucrânia é um desses territórios.
O que torna a Ucrânia tão importante? Porque não o Tajiquistão e o Usbequistão ou os Estados Bálticos? Ele nunca fala sobre a Polónia. Porquê a Ucrânia? Será por razões estratégicas e económicas ou por outras razões?
As razões estratégicas e económicas são provavelmente importantes para ele. A seguir à Rússia, a Ucrânia tinha a maior população de todas as repúblicas soviéticas e era o seu centro económico mais importante. Continua a ser o maior país pós-soviético depois da Rússia. A Ucrânia é também o elo de ligação entre a Rússia e a Europa Ocidental, o país-chave para o controlo do Mar Negro. O gás e o petróleo russos transitam para oeste através da Ucrânia. Há muitas razões objetivas para que isto seja importante.
Mas há ainda outro aspeto a ponderar. O problema é a ideia de que a Ucrânia só pode ser um Estado independente sendo um Estado anti-russo. A Ucrânia é o país que mais se assemelha à Rússia culturalmente: língua, religião, alimentação, costumes. Não há grandes diferenças. Mas só pode existir como um Estado independente por ser um adversário da Rússia. Não sou eu que digo isto. Foi Putin que escreveu isto este Verão num documento programático de 20 páginas sobre a história da Ucrânia, desde a época do domínio asiático até ao século XX. Publicou-o na página de internet do governo. "Russos e ucranianos são um só povo", escreveu. A ideia principal do artigo é que a Ucrânia não é apenas uma parte específica da Rússia, mas também um elemento orgânico desta. Assim, o projeto de uma Ucrânia independente corresponde a um plano das potências ocidentais, que utilizaram o país como arma contra a Rússia. A doutrina de Putin diz que hoje em dia não é diferente, que o Ocidente quer fazer da Ucrânia um Estado anti-russo. Putin também acredita que uma Ucrânia independente não tem valor positivo, mas que é um projeto negativo para minar a Rússia. Isto não é especulação da minha parte, mas um artigo original publicado por Putin em Julho deste ano. Para ele, o debate sobre uma possível subjetividade da Ucrânia é inútil. É por isso que a Rússia negoceia com os Estados Unidos, a Alemanha e a União Europeia, mas não diretamente com a Ucrânia.
Podemos concluir que, para Putin, a Ucrânia não é um tema de política internacional?
Não vale a pena tirar quaisquer conclusões. Putin escreveu isto como a sua contribuição para a compreensão interna do país. Ele negoceia sem a presença da Ucrânia. Para Putin, esta é uma apresentação apropriada da realidade. A Ucrânia não é o sujeito desta história, a Rússia e o Ocidente é que o são. Os Estados Unidos são o centro de gravidade do Ocidente. Esta é a visão do mundo de Putin.
Poderá a controvérsia degenerar num confronto militar entre a Rússia e a Nato?
Sejamos realistas. Não se pode comparar a Nato e a Rússia. A Nato é uma aliança de trinta países, a Rússia não tem aliados no Ocidente. A Rússia está sozinha nesta história e não tem qualquer hipótese de vitória num confronto direto e frontal. Na sua análise, Putin concluiu que a Nato está fragmentada e não será capaz de formular uma estratégia comum contra ele. Acima de tudo, que não será capaz de tomar a decisão de defender militarmente a Ucrânia contra uma invasão. Que ele pode, portanto, lançar o desafio.
Ele não esperava que os Estados Unidos, após a sua demonstração de impotência no Afeganistão, fossem capazes de restaurar tão rapidamente o seu monopólio de tomada de decisões relativamente aos seus aliados. Ele pensou que não poderiam recuperar um papel de liderança nos assuntos europeus e reconstituir a Nato como uma aliança militar funcional, um ano apenas após Trump. Putin viu a derrota no Afeganistão como um sinal da fraqueza da Nato e uma nova frente unida parecia improvável. Mas em semanas, a situação inverteu-se e a Nato parece muito mais unida do que antes. Se esta situação continuar, a Nato só pode sair beneficiada. Nos últimos dias, a Suécia e a Finlândia, países neutros, lançaram o debate sobre a possibilidade de aderir à Nato. A Finlândia será agora mais uma preocupação para Putin do que para a Ucrânia. A neutralidade da Finlândia foi uma vitória para a União Soviética após a Segunda Guerra Mundial. É bem possível que o resultado da tentativa de afastar a Nato das fronteiras da Rússia seja a entrada da Finlândia na Nato.
Então, na sua opinião, Putin está a perder espaço?
Sim, mas tem também algo a ganhar. Agora vão procurar uma solução onde ambos os lados possam reivindicar a vitória. Penso que uma agenda – que não é partilhada com o público – está a ser elaborada no decurso das negociações que podemos seguir. As negociações começaram com o anúncio do ultimato russo. Esta é uma forma muito estranha de iniciar as negociações. Apresentaram uma lista de exigências, mas o representante russo disse antes do início das negociações que esta lista não era um menu a partir do qual o Ocidente pudesse encomendar o que quisesse. Esta não é uma abordagem muito diplomática. Normalmente, o objetivo não é anunciado antes do início das negociações. Um ultimato é o que é imposto aos derrotados. Ficou, portanto, claro que os pedidos russos seriam rejeitados. No entanto, as negociações ainda estão em curso e as tropas russas estão na fronteira. Este contexto é perigoso. No entanto, penso que estão à procura de um acordo. Talvez uma garantia de que a Ucrânia não irá aderir à Nato nos próximos anos. Nada assinado, nenhuma garantia escrita, apenas um acordo informal.
Será que Putin está correto quando diz que o Ocidente quer empurrar a Rússia para fora da Ucrânia e torná-la ainda mais fraca? Ou será apenas paranoia?
Essa é uma grande questão. Se por Rússia fraca se entender a um país que não pode desempenhar o mesmo papel que a União Soviética numa ordem mundial liderada pelos EUA, Putin tem razão. Se quer dizer que não será permitido à Rússia fazer parte da ordem mundial nos seus próprios termos como potência soberana, penso que isso também é verdade. O problema de Putin é que ele não entende a política a não ser como uma competição entre potências mundiais. Para ele, a oposição política ao seu regime é também uma forma de o Ocidente fazer a Rússia parecer fraca nas relações internacionais. Para ele, a defesa dos direitos humanos significa a mesma coisa. Uma Rússia fraca. É por isso que ele proíbe os movimentos de defesa dos direitos. O facto de as eleições presidenciais na Ucrânia terem sido ganhas por um candidato que não foi apoiado por Putin é também uma derrota para a Rússia. Não creio que alguém consiga fazê-lo mudar de ideias.
Será que vamos voltar à Guerra Fria? Será qualquer avanço feito por um lado um fracasso do outro?
Estamos numa situação pior do que durante a Guerra Fria. Em comparação com a Guerra Fria, existe uma diferença significativa entre as elites do mundo. A Guerra Fria e a política de desanuviamento foram influenciadas por aquilo a que Max Weber chamou a ética da responsabilidade. Ambos os lados pensaram da mesma maneira durante a Guerra Fria: "Somos cínicos e não nos poupamos a golpes na política. Mas o nosso cinismo tem um objetivo específico. Queremos evitar a guerra nuclear a todo o custo. Esta era a lógica de políticos como Leonid Brezhnev ou Richard Nixon. Ambos foram insensíveis e cínicos até ao fim nas suas políticas, mas o que realmente queriam era impedir que os mísseis com ogivas nucleares descolassem. Toda a Guerra Fria foi construída com base na prevenção da destruição do mundo por armas nucleares. As elites na Rússia, nos Estados Unidos e provavelmente na Europa já não funcionam de acordo com os princípios desta ética de responsabilidade.
A segunda diferença é igualmente importante. Ao contrário da União Soviética durante a Guerra Fria, a Rússia moderna não tem nenhum projeto com o qual se possa dirigir ao mundo. Não pode pretender oferecer qualquer alternativa ideológica, política, social ou económica à ordem americana. Não há nenhum modelo político, social ou económico russo que se possa opor à democracia liberal americana. Putin não conseguiu sequer exportar a forma russa de fazer política para a Ucrânia. Foi por isso que meteu as mãos na Crimeia em 2014. Na história recente, a posição da Rússia de Putin é fraca. Muito mais fraca do que a posição da União Soviética durante a Guerra Fria.
A Rússia não tem amigos no Ocidente. A oposição tem alguns?
Os liberais russos estão na oposição. O Ocidente agradece-lhes. Muitos já estão no estrangeiro. Centenas de figuras liberais da oposição abandonaram recentemente o país por razões políticas. Os liberais têm muitos amigos no Ocidente e são bem recebidos pela União Europeia e pela administração dos EUA. Neste caso, não há qualquer problema.
Do ponto de vista da esquerda, a situação é completamente diferente. A esquerda europeia perdeu o interesse pelo internacionalismo. Eles veem o mundo como um conflito entre o imperialismo americano e aqueles que se lhe opõem. A posição anti-imperialista é dominante entre muitas forças de esquerda na Europa. Entre elas encontramos, surpreendentemente, simpatia por Putin, porque ele resiste à dominação política dos Estados Unidos. Parece-me que, à luz do conflito na Ucrânia, há uma necessidade urgente de renovar a abordagem internacionalista da esquerda europeia à política internacional. Isso seria muito útil para nós.
A nossa última conversa foi no final da Primavera passada, quando a ambientalista Anastasia Ponkina, de 20 anos, foi encarcerada na Sibéria. Nessa altura, uma nova geração parecia estar a emergir na Rússia, trazendo uma visão diferente para a política. Depois desapareceu. O que aconteceu?
Não desapareceu. Esta geração ainda está cá. Mas todas as estruturas políticas através das quais podia expressar as suas ideias foram quase completamente destruídas. Encontramo-nos agora numa situação semelhante à dos cazaques.
A situação não é assim tão má, pois não?
Não? Eu conheço muito bem o Cazaquistão. Estive lá várias vezes recentemente. Os acontecimentos dos últimos meses têm sido muito complexos. Foram apresentados de uma forma excessivamente simplista. Houve uma verdadeira revolta popular no Cazaquistão. É verdade, houve muitos provocadores e pessoas que vieram saquear as lojas, mas no centro dos acontecimentos houve uma revolta em massa das pessoas mais comuns. Os trabalhadores, os pobres, pessoas de todos os estratos sociais resistiram. Uma revolta popular clássica. Ocorreu num país governado durante décadas por um regime totalmente repressivo. Muito mais repressivo do que o de Putin. Nursultan Nazarbayev tornou-se presidente do país em 1990, depois de ter servido como secretário-geral do Partido Comunista. Governou até 5 de Janeiro deste ano, quando se demitiu do cargo de chefe do Conselho de Segurança do país. Imediatamente após tomar o poder, dissolveu todos os partidos e organizações da oposição. Em primeiro lugar, proibiu o Partido Comunista e todos os sindicatos independentes. Desmantelou todos os grupos liberais organizados e proibiu efetivamente toda a atividade política independente. Proibiu qualquer forma de organização, qualquer atividade. Em Janeiro deste ano, houve uma revolta que não tinha representação política. Porque não podia ter qualquer representação. Não havia organização e não havia líderes. Não existiam símbolos claros, ativistas políticos, partidos ou movimentos visíveis com programas e líderes. Tudo foi destruído há muito tempo. Banidos, quebrados, esquecidos ou líderes exilados. Tudo o que resta são pessoas zangadas na rua. Se a Rússia continuar o seu impulso, encontrar-nos-emos numa situação semelhante.
A partir de Moscovo, vemos que os países da Europa Oriental seguem no mesmo caminho e que as autoridades, da Polónia à Hungria e à Eslovénia, estão todas tentadas a transformar a democracia em regimes autoritários?
Vemos muitas coisas. Penso que compreendemos o que vos está a acontecer. Em muitos aspetos, partilhamos uma experiência comum, não é verdade?