Patrick Le Tréhondat Ukrainian feminists
Entrevista de Patrick Le Tréhondat com Lisa, Zhenya, Yana e Ivanka, feministas ucranianas que contam a sua experiência da guerra, a organização da solidariedade e os desafios dos movimentos feministas e LGBT+ no país.
Patrick Le Tréhondat: Antes de mais, falemos da situação antes de 24 de fevereiro. Podem dizer-nos como se formou a Bilkis? Apresentam-se como um “grupo de ativistas intersecional trans-inclusivo com uma agenda anticapitalista”. Como articulam estas dimensões políticas e sociais?
A Bilkis foi criada há dois anos e meio por duas das nossas militantes em Kharkiv. A atividade começou pela realização de conferências, pela organização de manifestações de rua no âmbito da campanha internacional das 16 dias de ações ativas contra a violência de género, pela escrita de textos sobre os temas da violência de género, dos direitos das mulheres e das pessoas homossexuais, do conceito de consentimento e muito outros temas, pela publicação de histórias de mulheres e de pessoas homossexuais que sofreram violência e partilharam estas histórias de forma a tornar visível um tema muitas vezes silenciado.
Tínhamos previsto organizar, em 5 e 6 de março, um estágio intensivo de dois dias com adolescentes com conferências e interações. Queríamos construir comunicação e reforçar a solidariedade entre as raparigas. Mas infelizmente, devido à agressão da Rússia, este evento não se realizou. Da mesma forma, também não foi publicado um pequeno jornal sobre distúrbios alimentares que tínhamos preparado no inverno e previsto para sair na passada primavera.
Devido aos ataques violentos no leste da Ucrânia as nossas militantes mudaram-se para Lviv, preparamos agora novos projetos ao mesmo tempo que fornecemos ajuda humanitária às pessoas que dela precisam.
Mais especificamente sobre a questão da transfobia e da homofobia na Ucrânia, podem dizer-nos qual é a situação na Ucrânia e quais são as vossas atividades sobre estes temas?
A situação está um pouco polarizada. Por um lado, com a guerra, as pessoas da comunidade LGBTQ+ têm o sentimento que desapareceram dos radares, assim como as dificuldades com que estavam confrontadas antes da guerra. Já não há ações de rua, marchas pela igualdade. No conjunto dos territórios ocupados é um desastre. Conhecemos casos em que a polícia entrou em casas apenas à procura de alguns jornais… para começar. Os representantes das pessoas LGBTQ+ não são sobre-humanos, são pessoas normais, estudantes, trabalhadores, para eles, é uma situação muito stressante.
Também há sítios nos quais os ataques destruíram os centros comunitários. Para além disso, há medo de escrever posts e centenas de mensagens foram suprimidas para que não se encontrem os seus autores porque seria perigoso. Agora a atenção dedicada ao problema da perseguição da comunidade é vista como muito menos importante porque o país enfrenta um problema mundial, assim, claro, o tema está um pouco esquecido. Na Ucrânia, as pessoas LGBTQ+ ainda não têm todos os direitos (por exemplo é impossível casar-se, é impossível ter filhos) mas continuamos a lutar. A nossa organização fornece ajuda financeira aos representantes LGBTQ+.
Mas, por outro lado, há acontecimentos felizes. Por exemplo, em Berlim, este ano, pela primeira vez, a comunidade ucraniana LGBTQ+ esteve ativa, apesar de todas as dificuldades provocadas pela guerra. A comunidade LGBTQ+ ucraniana tornou-se mais visível nas marchas do orgulho que acontecem noutros países. Algumas páginas nas redes sociais, como o instagram, têm mensagens de pessoas LGBTQ+ que estão na frente de combate. A Rússia utiliza igualmente a questão LGBTQ+ na sua propaganda. Há muitas vezes “informações” sobre os seus combates contra os homossexuais nazis em Mariupol, mostram-se revistas gays que supostamente teriam encontrado com cruzes gamadas e concluem: “não é por acaso que matamos os ucranianos”.
Podem dizer-nos alguma coisa sobre a paisagem do movimento feminista na Ucrânia, os seus grupos, a sua história?
Infelizmente, não somos peritas na matéria. Vamos falar no que conhecemos mas estará longe de ser um quadro completo do movimento feminista ucraniano.
Nestes últimos anos, o feminismo na Ucrânia tornou-se um movimento político cada vez mais popular e cada vez mais potente. Existem grupos feministas de orientações muito diferentes, da extrema-esquerda, à direita moderada, desde ativistas queer a grupos transexclusivos. O movimento feminista em geral é representado por diversas organizações mas existem também iniciativas populares não registadas oficialmente como é o nosso caso.
Antes do início do guerra em grande escala da Rússia contra a Ucrânia, a maior parte do movimento de mulheres estava envolvida em atividades educativas, de defesa dos direitos das mulheres, de construção e desenvolvimento do movimento na Ucrânia. Contudo, desde 24 de fevereiro, grande parte destas organizações mudaram de atividade devido às consequências da guerra para ajudar as mulheres que sofrem com o conflito.
Têm relações com outros grupos feministas e nomeadamente no estrangeiro?
Atualmente na Ucrânia, temos relações com a organização Atelier Feminista, bem como com militantes feministas de Kharkiv e de Dnipro.
No que diz respeito ao estrangeiro não temos relações estreitas ou contactos constantes com nenhum grupo mas de vez em quando representantes do movimento feminista de diferentes países escrevem-nos, desejando conhecer mais sobre as nossas atividades. Também já recebemos, em várias ocasiões, donativos a partir de iniciativas ou organizações europeias de esquerda. As nossas militantes também têm participado nas reuniões feministas online com feministas da Rede Europeia de Solidariedade com a Ucrânia e participaram na redação de um manifesto das feministas ucranianas.
Uma questão mais pessoal: que autoras vos inspiraram?
Lisa: Pessoalmente fui inspirada por artistas que, através do seu trabalho, mostram as condições nas quais as mulheres se encontram e como lutam. Entre elas, Marina Abramovitch, Ada Rybachuk, Teodozija Bryzh. Para mim não se trata de uma história de inspiração mas da realidade que vemos e que queremos mudar.
Zhenya: Não fui inspirada por pensadoras mas por exemplos de verdadeiras militantes de base que falam honestamente da posição das mulheres num mundo patriarcal e capitalista, que organizam concentrações e conferências sobre os temas da luta contra a violência sexista, dos direitos das mulheres e das pessoas homossexuais, da resistência à heteronormatividade entre outros.
Sinto-me inspirada pelas mulheres e pessoas homossexuais que declaram abertamente a sua posição política, falam de experiências traumatizantes e defendem corajosamente os seus direitos, ainda que toda a sociedade as condene. Tenho refletido frequentemente na experiência da nossa iniciativa e no que a Bilkis conseguiu fazer ao longo destes anos de existência e isso inspira-me.
Yana: Não há autoras específicas que me inspirem. Contudo, senti-me sempre inspirada por alguns dos pensamentos de diversas autoras que tratam das questões de justiça, de liberdade e de igualdade. É uma fonte de inspiração falar em questões políticas e éticas no meu círculo de colegas e amigas, refletir em conjunto sobre as grandes questões. Também me sinto inspirada pelas pessoas que estão à minha volta, que são tão ideológicas quanto possível assim como profundamente dedicadas ao trabalho que fazem.
Voltemos ao período que e seguiu ao 24 de fevereiro. Como viveram a agressão imperialista?
Lisa: Eu vivi a invasão em Kiev, ficando sozinha em casa e não sabendo o que fazer – o meu amigo, com o qual vivi durante seis anos, deixou-me sozinha no apartamento na manhã de 24 de fevereiro. Os meus outros amigos cuidaram de mim e ajudaram-me a sair de Kiev para ir para outra cidade para casa de pessoas próximas no oeste da Ucrânia; a viagem durou 17 horas, enquanto habitualmente dura apenas cinco. Vivi aí três meses, a cidade foi também bombardeada, ouvi as explosões e vi um incêndio. Sou originária da Crimeia. Por isso foi a segunda vez que perdi a minha casa e a minha vida por causa da agressão russa.
Zhenya: Acordei cedo em Kharkiv por causa do barulho das bombas, telefonei ao meu pai que tinha carro e me podia levar, a mim e aos meus amigos, de Kharkiv para Poltava (a minha cidade natal); daí tínhamos previsto partir para Lviv e mais tarde para a Alemanha. Passei os dois primeiros meses da guerra na Alemanha em Potsdam. Participei nas manifestações em que se exigia ao governo alemão a imposição de um embargo ao petróleo e ao gás russo e o fornecimento de armas à Ucrânia. Junto com os meus amigos imprimimos panfletos e distribuímo-los nestas manifestações.
Porém, sentia-me fora do contexto e queria verdadeiramente regressar à Ucrânia porque entendia que aqui poderia contribuir com uma ajuda mais importante e significativa, por exemplo face à crise humanitária que se produziu devido à agressão russa.
Em geral, sobre as minhas lembranças do período que passou desde o começo da guerra em grande escala, tenho a impressão que se trata de uma espécie de pesadelo e as minhas memórias estão envolvidas numa nébula. Não senti a chegada da primavera nem do verão, é como se ainda vivesse em fevereiro.
Yana: A 24 de fevereiro, às cinco horas da manhã, fui acordada pelo barulho das explosões. A 23 de fevereiro tinha festejado o meu 23º aniversário. Tomei imediatamente a decisão de sair da cidade, Kharkiv, e depois de passada quase uma semana chegámos a Lviv. Passámos quase um dia num comboio que demora habitualmente doze horas. Depois foram precisas 16 horas para ir de Lviv a Przemysl, num tempo normal demoraria três horas. Foi para a Alemanha durante dois meses mas voltei porque sentia a necessidade de estar aqui. A minha dor principal nesta guerra, para além da dor geral, é que a minha família – mãe, avó e irmã de 11 anos – vivem sob ocupação na região de Kharkiv desde 27 de fevereiro até hoje. Não há ligação, não há Internet. Consigo falar com a minha mãe uma vez por mês. A inquietação constante pela vida e saúde das pessoas próximas de mim tem um impacto forte sobre a minha saúde mental.
Cada vez que penso no facto de que no meu país há uma guerra no leste desde há oito anos e desde há seis meses uma guerra em grande escala, sinto um sentimento forte de irrealismo. Não consigo acreditar que isto seja possível e que se esteja a passar aqui e agora.
Ivanka: Venho do Donbass, é a segunda guerra que conheci na minha vida. Na primeira fugi para Kharkiv, na segunda para Lviv. A 23 de fevereiro tinha tido um dos dias mais felizes da minha vida, tinha sentido que o inverno terminava e com ele o ciclo depressivo na minha vida. A 24 de fevereiro acordei com a chamada de um amigo que estava inquieto com a minha segurança e durante várias horas o meu cérebro recusou-se a aceitar a realidade como verdadeira; pensei que era tudo um sonho. Passei os primeiros dias da guerra em Kharkiv, depois apanhei o comboio durante muitas horas ao frio e fui evacuada para Lviv, onde ainda vivo hoje.
Como é que a guerra modificou as atividades da Bilkis e mais amplamente qual é a vossa análise sobre esta agressão de um ponto de vista feminista, nomeadamente porque se sabe que as mulheres são vítimas de formas particulares no conflito (violações, exílio, precariedade social…)?
A Bilkis mudou o seu registo de atividades para responder às necessidades da população ucraniana. O essencial para as pessoas que perderam tudo era terem um abrigo, alimentação e medicamentos. A atividade educativa que desenvolvíamos na Bilkis foi posta entre parêntesis para dar resposta às necessidades humanas fundamentais do momento, cuja dimensão é inacreditável dada a destruição do nosso povo pela Rússia.
O coração das pessoas da Ucrânia está cheio de dor. A agressão da Rússia mostrou-nos a dimensão horrível da violência de que são capazes os homens russos e a vulnerabilidade das mulheres e das crianças ucranianas face ao agressor. De um ponto de vista feminista, conhecendo os crimes cometidos contra as mulheres, compreendemos claramente uma coisa, temos necessidade de uma proteção ainda mais das mulheres e para nossa proteção, precisamos de armas. O exército russo são criminosos absolutos que devem ser punidos pelos crimes contra o nosso povo, contra as nossas mulheres e crianças.
Na vossa página Facebook escrevem: “temos um projeto próprio para financiar a comunidade LGBTQ+, fornecer ajuda humanitária às mães com crianças e às mulheres idosas”. Como se traduz isto concretamente?
Estamos empenhadas na ajuda humanitária. Aceitamos ofertas vindas de conhecidos e de conhecidos de conhecidos. Publicamos posts e formulários para as pessoas necessitadas, ajudámos um pouco com o dinheiro que tínhamos a evacuação das pessoas que fugiam da guerra, para encontrarem transporte ou alojamento para as famílias que necessitavam. Todos os donativos e subvenções foram gastas em ajuda humanitária. Tratámos quase 700 pedidos, ou seja ajudámos 700 famílias. Um dos desafio que tivemos de enfrentar foi o grande número de solicitações, mais do que podíamos fisicamente e financeiramente gerar.
Ups… esqueci-me de perguntar porquê o nome de Bilkis, o que significa?
Refletimos longamente antes de escolher um nome e decidimos utilizar o nome de Bilkis, a rainha do Sabá, descrita na mitologia muçulmana como a deusa do amor e de todos os pobres, um semi-demónio, uma bruxa. Na série televisiva American Gods, Neil Gaiman retrata-a como uma profissional do sexo que come homens pela vagina após o sexo. Achámos essa história simbólica e interessante e trouxemos o nome desta deusa para o nosso grupo.