Kateryna Turenko
Um ano depois do início da guerra e nas vésperas do Dia da Mulher, Kateryna Turenko falou com várias ativistas feministas para mostrar o que têm feito neste cenário e quais os desafios que enfrentam.
Em meados de fevereiro, um projeto de lei foi colocado na página de Internet do Parlamento, apelando ao cancelamento das celebrações do 8 de Março, pretendendo introduzir em vez delas o Dia da Mulher Ucraniana. Alegando as perdas económicas derivadas do 8 de Março ser um feriado nacional e a necessidade de “se afastar do legado soviético”, os políticos ignoravam descaradamente o significado político do dia que chama a atenção para a luta pelos direitos das mulheres.
As feministas ucranianas têm lutado desde há muitos anos por direitos políticos, económicos e pessoais e por oportunidades para as mulheres. Chamaram a atenção para a violência de género, para a disparidade salarial entre géneros e para a desvalorização do trabalho reprodutivo. De forma alguma estes problemas desapareceram com a guerra e a crise: pelo contrário, aumentaram e criaram novos desafios para o movimento feminista.
Falámos com ativistas de base para apreender mais sobre o estatuto da mulher durante a guerra, os problemas e desafios enfrentados pelo movimento feminista e as ameaças que podem vir a tornar-se relevantes para a sociedade ucraniana quando a guerra acabar.
Como é que a guerra afeta a desigualdade de género?
Um dos problemas mais duros que a sociedade ucraniana enfrentou depois de 24 de fevereiro de 2022 foi a violência sexual perpetrada por soldados russos.
“As mulheres ucranianas estão sob ameaça constante de crimes de guerra como a violência sexual. Apenas podemos imaginar o que se está a passar nos territórios ocupados”, diz a integrante do “Workshop Feminista, Anastasia Yurchenko.
Para além dos perigos físicos diretos dos bombardeamentos e da violência, a guerra conduz a duras ramificações sócio-económicas. Perto da frente de batalha, a população acaba por estar muitas vezes à beira da catástrofe humanitária mas o problema intensificou-se em todo o lado. As populações vulneráveis são as primeiras a sofrer por isso, já que o financiamento da esfera social está a ser cortado.
“Baixar os salários na função pública afeta as mulheres que são grande parte da mão de obra do Estado em diferentes níveis (enfermeiras, médicas, professoras, burocratas). A perda de dinheiro para o setor pré-escolar implica um fardo adicional para as mulheres. Com a falta de financiamento, alguns programas contra a violência podem ser restringidos, etc.”, explica Anastasia.
Yana, ativista da iniciativa “Bilkis”, também enfatiza que a guerra aumenta a desigualdade económica: “aumenta a carga sobre o setor dos cuidados que é principalmente composto por mulheres. Há mulheres que carregam nos seus ombros o trabalho reprodutivo não pago ou mal pago.
“A maioria das tarefas domésticas recaem nas mulheres. Se não há gás, eletricidade, água e aquecimento, eles enfrentam problemas: como dar banho ao bebé, cozinhar uma refeição, limpar a casa e por aí em diante”, acredita Yana.
No meio destes problemas há alterações legislativas otimistas que estão a acontecer: a ratificação da Convenção de Istambul para a qual as feministas ucranianas lutavam há anos, a intensificação do trabalho sobre a resolução da ONU: “Mulheres. Paz. Segurança”.
“Se olharmos para este nível nacional, vemos que a integração europeia se tornou uma influência positiva e uma alavanca para o Estado. Já não podem ignorar a questão da igualdade de género”, diz Anastasia Chebotaryova, membro da “Casa Feminista”.
A resolução 1325 da ONU “Mulheres. Paz. Segurança”, crê, é muito importante durante a guerra: “Esta resolução é significativa já que reconhece que a guerra afeta homens e mulheres de forma diferente e que se foca nas medidas de segurança que contrariam a violência e na inclusão das mulheres nos processos de implementação da paz. A Ucrânia tornou-se o primeiro país a ratificar a resolução 1325 em tempo de guerra. A invasão em larga escala tornou-se o estímulo para atualizar o plano nacional de ação. Antes, isto fazia parte principalmente da agenda das ativistas e de governos nas regioes leste e do centro da Ucrânia, agora vemos novas coligações a emergir em todas as regiões ucranianas”, conclui a ativista.
Alisa Shampanska, da iniciativa “Femsolution” vê, por sua vez, mudanças positivas na visibilidade das mulheres nas forças armadas ucranianas e no uso de formas femininas de substantivos ao nível do Estado.
Quais são as perspetivas para o movimento feminista pós-guerra?
A defensora dos direitos humanos e dirigente do centro “Perspetivas das Mulheres”, Marta Chumalo, identifica quatro ameaças que se podem vir a tornar relevantes no futuro próximo. A primeira e mais importante: há uma ataque aos direitos reprodutivos. Ela acredita que é provável que haja tentativas de proibir os abortos, apelando aos argumentos da perda de vidas na frente de batalha e das mortes causadas pelos bombardeamentos, bem como ao facto de muitas ucranianas terem saído do país. Outra ameaça é o fortalecimento do discurso da extrema-direita que anda frequentemente de mãos dadas com ataques aos direitos das mulheres. A radicalização do nacionalismo é uma consequência frequente das guerras. Pode vir a acontecer um aumento da violência doméstica, causado por homens que voltem da frente de batalha traumatizados psicologicamente. Também há o risco de que decisões chave sobre a recuperação e reconstrução ao mais alto nível sejam tomadas principalmente por homens.
Anastasia Chebotareva concorda que as necessidades de mulheres e raparigas podem ser ignoradas nos processos de reconstrução pós-guerra: “será relevante para a reconstrução das cidades, da infraestrutura de cuidados, da infraestrutura básica. É fundamental começar desde já a procurar formas de sermos incluídas no processo. As organizações não governamentais têm uma oportunidade de conseguir o apoio das suas parceiras internacionais, diz a ativista.
A sociedade ucraniana já está a precisar de programas de reabilitação de veteranos que os ajudem a lidar com os traumas tanto físicos quanto psicológicos: “implementar um sistema de reabilitação e de ajuda é um desafio importante. O movimento feminista pode também participar nisto”, acredita Alisa Shampanska.
Marta Chumalo assinala a ameaça do fortalecimento dos papéis tradicionais de género tanto dos homens quanto das mulheres: “o comportamente que esteja fora do quadro definido por essas normas muitas vezes não é aprovado por outras pessoas. Sejam homens que evitam a mobilização ou mulheres afetadas pela violência doméstica por homens desmobilizados que estejam a pedir ajuda – enfrentam condenação e falta de compreensão. Isso, por sua vez, amplia as diferenças de género”.
Que práticas feministas se tornaram impossíveis por causa da guerra e quais emergiram no seu lugar?
De acordo com as ativistas, desde o início da invasão em larga escala, a maioria das iniciativas feministas lançaram campanhas de ajuda humanitária, desviando assim ligeiramente o foco das suas atividades. Por exemplo, o centro “Perspetivas da Mulher” já criou sete abrigos para mulheres de populações vulneráveis: mulheres idosas deslocadas internas, mulheres com perturbações mentais, mães de muitas crianças, mulheres portadoras de deficiência e mulheres vítimas de violência de género. A iniciativa “Casa Feminista” também se tem focado fortemente na distribuição de ajuda humanitária. “Trata-se frequentemente de locais de difícil acesso aos quais nenhum grande fundo humanitário vai chegar – aldeias, territórios ocupados temporariamente, áreas próximas da linha da frente. Criámos uma rede ampla de voluntárias e parceiras – Em Kramatorsk, Kherson, Zaporizhzhya e na região de Zapozizhzya e na de Kharkiv” diz Anastasia Chebotareva.
A ativista Ivanka, da iniciativa “Bilkis”, também explica que as suas atividades estão dirigidas principalmente para as pessoas de baixos rendimentos e sem-abrigo: “estamos a trabalhar atualmente em dois projetos com orientação social. Um deles é o “Espaço das Coisas”, onde podes trazer algo de que já não precisas e levar algo que precisas. O “Comedouro de Aves” é destinado a pessoas de baixos rendimentos e sem-abrigo. Somos uma iniciativa intersecional feminista e isso faz-nos acreditar que a desigualdade de género se liga com outras formas de desigualdade como, por exemplo, a económica. Também planeamos organizar uma série de projeções de filmes sobre as mulheres e a guerra e fazer tiktoks educativos sobre o feminismo na Ucrânia”.
Assim, o envolvimento na ajuda humanitária não significa que as feministas deixem de falar nos temas da desigualdade de género. Pelo contrário, é ajudando pessoas que conseguem aumentar o seu público. Alisa Shampanska também conta como a “FemSolution” combina as atividades humanitárias com as educativas: “agora, as nossas principais atividades nessa áreas são através da influência informativa sobre o nosso público nas redes sociais. Providenciamos ajuda humanitária às mulheres e suas famílias e as pessoas subscrevem as nossas redes sociais porque querem receber ajuda, não por causa dos seus pontos de vista feministas. Por isso, passámos a criar imagens educativas: por exemplo, participámos na campanha “16 dias contra a violência” e convencemos as pessoas a votar na plataforma online estatal Diya para manter o 8 de março um feriado nacional, de forma a conseguirmos continuar com os protestos”.
Há ativistas que saíram do país e estão a defender a necessidade de maior apoio à comunidade ucraniana: “vivo atualmente no estrangeiro e a minha principal atividade é procurar solidariedade internacional, divulgar informação verdadeira e lutar contra a propaganda. Ao longo deste ano, tenho trabalhado à distância com diferentes comunidades dentro do país, com atividades que vão desde procurar e garantir ajuda financeira à organização de eventos fechados, focados na reflexão, diz a ativista do “Movimento Social” Valeriya Zubatenko.
Solidariedade e cooperação – na Ucrânia e no estrangeiro
A maioria das feministas concorda que desde o início da invasão em larga escala, os laços entre os coletivos feministas de base se fortaleceram.
“Quando estamos a criar um abrigo ou um programa humanitário, contactamos ativistas mais experientes e recebemos ajuda. Se, por exemplo, precisamos de fraldas para as crianças de um abrigo, escrevemos para os grupos de chat das ativistas e encontramos o que precisamos”, partilha Anastasia Yurchenko.
Há dezenas de exemplos de cooperação entre diferentes movimentos que não estão limitados a estes esforços conjuntos das feministas mas incluem outro tipo de ativistas e a comunidade LGBT+. A ativista acredita que a sociedade mostrou muitos casos positivos que incluem discussões influentes sobre violência contra as mulheres e objetificação, o estatuto das mulheres nas forças armadas e um movimento poderoso de voluntariado que inclui as feministas. Por outro lado, partilha histórias de atitudes hostis dos representantes das autoridades municipais.
“Os deputados conservadores pressionaram a nossa organização, interferiram agressivamente com o nosso trabalho. Infelizmente, as autoridades não nos ofereceram qualquer solução adequada para este problema”, acrescenta.
Anastasia Chebotaryova sublinha que as feministas ucranianas tiveram significativamente muito mais atenção da comunidade internacional. “Somos convidadas para conferências, tornamo-nos heroínas de artigos e temos oportunidades de aderir a programas de intercâmbio e de estudos. Isto faz-me acreditar que temos hipóteses de sermos proativas nas respostas aos desafios que os nossos adversários ideológicos estão a preparar”.
Zhenya, da “Bilkis”, também refere a ajuda material das feministas europeias: “no Verão fomos visitadas por feministas francesas, deram-nos coisas importantes para o nosso escritório e ajudaram-nos com donativos. Outras ativistas europeias também nos enviaram ajuda humanitária e material de escritório”.
Ao mesmo tempo, várias ativistas mencionam o manifesto “Resistência feminista contra a guerra”, no qual ativistas e académicas estrangeiras se manifestavam contra o envio de armas para a Ucrânia. Entre os desafios que o movimento feminista enfrentou ao procurar solidariedade internacional, Valeriya Zubatenko lembra o facto de parte da esquerda ocidental não perceber o seu privilégio de segurança. “Ao passo que na Ucrânia, desde há um ano, temos estado a mostrar na prática o que é o feminismo e o antifascismo e não apenas a falar dele, no Ocidente estes mesmos problemas continuavam a ser objeto de longos debates: em vez de recolher fundos para o esforço humanitário, têm estado a equacionar se é certo ou não enviar armas para a Ucrânia. Na medida em que procuramos a solidariedade da esquerda ocidental, isso tornou-se um desafio”.
Opondo-se a algumas das afirmações mais problemáticas defendidas por algumas feministas ocidentais, por iniciativa de um grupo de ativistas ucranianas elaborou-se o manifesto “Direito a resistir”. Este apelo, assinado por mais de 900 ativistas e 70 coletivos de todo o mundo, provou que as feministas ucranianas têm bastante apoio.
Desde o início da guerra, têm acontecido mudanças significativas na sociedade ucraniana. Marta Chumalo diz que o nível de apoio mútuo e de sensibilidade às necessidades de feministas de diferentes regiões da Ucrânia aumentou muito, tal como a cooperação, a solidariedade e o apoio das feministas estrangeiras. “A ideologia feminista está a tornar-se uma tendência. Muitas mulheres identificam-se agora como feministas mesmo que antes não o fizessem”.
No final, sugerimos às ativistas que escolhessem palavras de ordem para o 8 de março.