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Cerca de 20 milhões de toneladas de cereais estão retidas na Ucrânia, enquanto se sucedem os esforços diplomáticos para criar corredores marítimos de escoamento.
O atual bloqueio dos portos ucranianos tem consequências no aumento dos preços e insegurança alimentar global. Analistas avançam que também poderão ser sentidos em Portugal por aumento dos preços da matéria-prima e de pressões inflacionistas.
Em 2021, a Ucrânia exportou 201 milhões de toneladas de trigo, sendo o sétimo produtor mundial e o sexto exportador. Para além disso é o quarto e o sexto exportador de cevada e milho, respetivamente. Afigura-se particularmente relevante para os países mais pobres - a Tunísia compra 53% do trigo que consome à Ucrânia, a Líbia 44%, Egito 26%, Índia e Paquistão quase 50%.
O jornal espanhol El País explica como a invasão russa tem minado a capacidade de exportação ucraniana. As matérias-primas escoavam pelos portos do mar Negro. Nas primeiras semanas do conflito, o exército ucraniano encheu Odessa, o principal porto, de trincheiras para se defender de um possível ataque marítimo, bloqueando o seu acesso. Esta decisão defensiva abdicou das principais rotas de exportação. Por cima disto, estes meses têm sido marcados por ataques localizados aos portos e, mais recentemente, desde maio, infraestruturas de produção agrícola ucranianas têm sido sistematicamente atacadas - silos, moinhos, elevadores, instalações portuárias, etc.
Atualmente cerca de 20 milhões de toneladas de cereais estão retidas na Ucrânia sem conseguirem chegar aos destinatários. A nova campanha, que geralmente se iniciaria em julho, está comprometida uma vez que a produção não consegue avançar com os silos ocupados e sem possibilidade de proceder à seca e tratamento dos cereais.
Países africanos são dos que mais sofrem com o bloqueio
No passado dia 31, o chefe de Estado senegalês, Macky Sall, que assume agora a presidência rotativa União Africana, alertou os líderes europeus sobre as consequências para África. A escassez de cereais e escalada dos preços tem sido largamente sentida e o continente conta com 282 milhões de pessoas que lutam contra a fome.
Sall sublinhou que antes da guerra, os países africanos importavam 44% do trigo da Ucrânia e da Rússia. A Ucrânia só por si produzia comida suficiente para alimentar 400 milhões de pessoas. Para agrevar o problema, o preço dos fertilizantes está três vezes mais alto que em 2021, reduzindo o rendimento dos cereais em África entre 20 e 50% este ano. Sall acusou também as sanções europeias sobre os bancos russos de terem exagerado o problema ao dificultar o pagamento a nível internacional.
Dias mais tarde, esta sexta-feira, reuniu também com Putin para apelar ao desbloqueio.
Novas rotas terrestes ou desbloqueio dos portos por negociação diplomática
O ministro ucraniano de Infraestruturas, Aleksander Kubrakov, em entrevista ao Financial Times, explicou as dificuldades das rotas de exportação terrestres. Por um lado, a circulação ferroviária não é uma opção por as linhas não serem compatíveis. Seriam precisos investimentos entre 2 e 3 mil milhões de euros para que a linha ucraniana cumprisse os critérios europeus. Por outro, o deslocamento de camiões pela fronteira com a Polónia ou Roménia é um processo lento e burocrático. A UE simplificou os procedimentos e os exportadores ucranianos passaram a oferecer maiores garantias de viagem, o que aumentou a capacidade de exportação por esta via. No entanto, continua a cobrir apenas 20% do que se conseguiria exportar pelo Mar Negro.
Outra opção para Kiev seria exportar mensalmente quatro milhões de toneladas de cereais através da Bielorrússia, mas o plano não é politicamente viável por Lukashenko ter permitido à Rússia utilizar a Bielorrússia como frente de ataque. A única possibilidade real e imediata para responder à necessidade alimentar mundial continua a ser a rota marítima.
Turquia assume papel de mediador para desbloquear comércio
Também dia 31, Emannuel Macron e Olaf Scholz propuseram a Putin o fim do bloqueio dos portos nos termos de uma resolução das Nações Unidas, uma vez que é a organização que consegue garantir a segurança desta operação a Kiev. "A decisão depende de um acordo da Rússia e das garantias que oferece: em face da desminagem (do porto de Odessa), que é essencial para que possam ser encaminhados graneleiros e navios e levar esses cereais, (são necessárias) garantias de segurança fornecidas aos ucranianos para evitar que sejam atacados", esclareceu Macron. Salientou ainda o "papel muito importante da Turquia, dada a sua responsabilidade no Mar Negro" e as suas recentes relações com Moscovo.
Esta quarta-feira, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros foi à Turquia discutir o problema e à saída da reunião atirou responsabilidades para o lado ucraniano. "Já explicámos que podem ser transportados livremente para o seu destino. A Rússia não está a colocar obstáculos a isso. É o senhor Zelensky que tem de dar a ordem, se ainda mandar em alguma coisa por lá, para permitir que os navios estrangeiros e ucranianos vão para o Mar Negro“, afirmou Sergei Lavrov, depois de rejeitar as acusações de roubo de cereais por parte das tropas ocupantes russas.
Do lado turco, o ministro dos Negócios Estrangeiros Mevlut Cavusolglu diz que o país está disposto a mediar a situação no Mar Negro, mas afirma que uma condição básica do acordo é que sejam aliviadas as sanções que impedem na prática o comércio de cereais e fertilizantes oriundos da Rússia. "Não basta dizer que os produtos russos, como cereais e adubo, não estão incluídos nas sanções, que são as declarações que temos visto ultimamente. Achamos que são precisos dar passos para permitir que os navios que transportem estes produtos possam atracar em portos e receber serviços logísticos, assim como assuntos de pagamento bancário", detalhou Çavusoglu, citado pela agência Efe.
Do lado ucraniano, Zelensky afirmou que nem ele nem o seu ministro dos Negócios Estrangeiros foram convidados a discutir o assunto na Turquia. Quanto aos esforços que permitam a desminagem do porto, Zelensky diz que a melhor garantia não são as promessas de Moscovo de que não irá usar a rota segura para atacar Odessa, mas sim a instalação de armamento moderno que tem vindo a negociar para as tropas ucranianas colocarem naquela zona.