Ilya Budraitskis
Durante os seus 20 anos de poder, Putin consistentemente pregou um cinismo que corroeu a sociedade de cima a baixo. O seu resultado lógico é a justificação ideológica de crimes de guerra e a desumanização de toda uma nação. A verdadeira desnazificação da Rússia é uma tarefa difícil que temos pela frente.
É evidente que o Kremlin não procura apenas atingir objetivos geo-estratégicos na Ucrânia, como restaurar a “Rússia histórica” ou conter a NATO. Os discursos de Vladimir Putin, assim como a propaganda oficial, apontam para um objetivo ideológico ambicioso – a revisão completa dos conceitos políticos e morais que estão na base do consenso europeu desde a II Guerra Mundial.
O núcleo deste consenso tácito de décadas pode ser encapsulado no lacónico “nunca mais/nie wieder”. O pressuposto era que a página da história que tinha tornado o nazismo possível como ideologia e sistema de práticas tinha sido virada para sempre e que o nazismo não poderia voltar sob qualquer forma.
Durante décadas, o fundamento deste pressuposto foi a memória coletiva, que estava acima das fronteiras nacionais e não podia ser objeto de qualquer conflito travado com base nos interesses de um dos Estados. Contudo, as gerações passaram. As memórias perderam a sua vividez. Tudo o que ficou do nazismo foi o seu estatuto de mal absoluto que não podia ser justificado. Porém, foi através deste mesmo estatuto que foi transformado numa justificação chave da guerra da Rússia contra a Ucrânia.
A “desnazificação” de Putin significava em primeiro lugar e principalmente que não só a guerra era aceitável como era moralmente necessária. Numa guerra contra o nazismo não pode haver compromissos e o preço a pagar não interessa. Na batalha entre o bem e o mal não se pode alcançar um acordo pacífico porque apenas conduziria ao lado bom ser corrompido e estragado. O nazismo desafia todas as leis humanas e, portanto, aos próprios nazis não se atribuem direitos universais. Tal como com os “terroristas”, não se negoceia com nazis – matam-se. Assim, se a Ucrânia se tornou um Estado nazi e todo o mundo ocidental coletivamente conspirou para que isso acontecesse, apenas a Rússia pode fazer justiça moral. Fica assim com o direito de restaurar a humanidade universal, porque o resto do mundo perdeu a sua imunidade ao nazismo.
Esta é a lógica monstruosa de um artigo recente de Timofey Sergeytsev1 que oferece uma justificação moral para os massacres em Bucha. Ele escreve que a luta contra o nazismo atualmente se tornou “um assunto puramente russo” dada a “natureza anti-fascista” da “civilização russa”. Numa equação na qual a força militar é igual à moralidade, o oposto também é verdadeiro: a moralidade é determinada pela força. Se a Ucrânia fosse “desnazificada” como Sergeytsev propõe – através de massacres e da “reeducação” da população “nazificada” em campos de concentração – então esta seria exatamente a imagem de uma vitória do bem sobre o mal num novo mundo livre do nazismo. Ora, como Sergeytsev o coloca, “a ideologia do desnazificador não pode ser contestada pelo lado culpado que está a ser sujeito à desnazificação”. A alternativa é simples: ou o nazismo é destruído sem piedade ou um novo Holocausto(link is external)2 espera os russos.
No seu famoso livro, As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt escreve que Hitler (ao contrário de Estaline) é um “novo tipo de criminoso” porque não procurava justificação numa distorção da moralidade humanística do passado mas procurava estabelecer uma moralidade fundamentalmente nova. Esta nova moralidade iria apagar o próprio conceito de ser humano (e consequentemente os seus direitos naturais) e substituí-lo por uma luta das raças porque as espécies biológicas teriam sido criadas pela natureza como desiguais. O direito à vida e à morte não seria universal mas seria redefinido constantemente de forma dinâmica através da batalha existencial pelo espaço vital.
Franz Neumann, um outro astuto académico do nazismo, analisou a deformação do sistema judicial da Alemanha nazi, que estava baseado num abordagem “fenomenológica” à lei. Isto queria dizer que o veredicto num tribunal nazi era decretado com base na essência e não no ato, respondendo primordialmente à questão “quem”, enquanto que a questão “o quê” era inteiramente secundária. O tribunal não assumia assim uma posição imparcial mas era meramente um instrumento de proteção da raça, defendendo-a de quaisquer ameaças à pureza e à unidade interna. A relatividade da moralidade e da lei face às leis da natureza, viradas de cabeça para baixo pela luta política e militar permanente das “entidades” raciais antagonistas, era um elemento chave da ideologia nazi. Foi esta visão da realidade que foi derrotada na II Guerra Mundial e que nunca mais deve voltar (levaria inevitavelmente a novas guerras).
A inversão monstruosa que a lógica do Kremlin está a tentar implementar atualmente reside na ideia de que o nazismo deve ser definido estritamente de acordo como o método nazi. O nazismo perde assim as suas características universais e transforma-se numa ferramenta para criar “o inimigo”. A diferença entre nazi e não-nazi reduzir-se-ia à diferença face ao estrangeiro. E fazer esta distinção depende apenas da força bruta, da dominância militar crua. O maior prémio da guerra da Ucrânia para a Rússia de Putin é a oportunidade de rotular de nazi quem quer que recuse submeter-se aos ditames do vencedor (e assim privá-lo do direito a existir).
Se na II Guerra Mundial, como Putin acredita, a União Soviética era meramente um avatar da eterna “Rússia Histórica”, então a Rússia é organicamente “anti-fascista” e todos os seus adversários externos são potencialmente “nazis”. Nesta construção, a luta contra o mal absoluto do nazismo torna-se o mesmo do que a luta pelo domínio global da Rússia. A moralidade e a geopolítica fundem-se num todo fundamentalmente inseparável e nações inteiras tornam-se portadoras de ideias (o bem ou o mal) apenas com base na sua “essência” – no seu “destino histórico”, que os contemporâneos não podem alterar.
Uma tal conceção do mundo – como uma luta eterna de entidades coletivas quase-naturais na qual as mais fortes vencem – representa de facto a base ideológica de quase todos os tipos de fascismo. A vitrine eclética – seja a teoria racial ou a “des-ucranização” – deve-se apenas às circunstâncias históricas específicas. Quem acredita que o fascismo nasce de uma obsessão fanática das massas por uma qualquer “grande ideia” está profundamente errado; pelo contrário, o fascismo é baseado no mais profundo cinismo e no maior desprezo pela capacidade das pessoas acreditarem em ideias e defendê-las até ao fim. Afinal de contas, qualquer ideia ou conceito, de acordo com o fascismo, é apenas um truque na luta animal entre interesses: ao contrário dos direitos universais e liberdades, que são apenas na verdade paleio hipócrita, a “essência” (o “instinto racial”, a “natureza humana”, os “códigos culturais”, etc.) nunca mente.
Durante os seus 20 anos de poder, Putin consistentemente pregou este cinismo que corroeu a sociedade de cima a baixo. Hoje o resultado lógico deste cinismo desabrido é a justificação ideológica de crimes de guerra e a desumanização de toda uma nação. A verdadeira desnazificação da Rússia é uma tarefa difícil que temos pela frente. Um elemento central dela deve ser repensar e lidar com esta perigosa mistura de desprezo pelos mais fracos e desculpabilização da competição e da violência que é capaz de fortalecer permanentemente o nazismo.