Dois anos de guerra na Ucrânia

A fadiga do tempo roubou a empatia e a atenção inicial. A guerra na Ucrânia foi normalizada mas os números de vítimas e de estragos acumulam-se. Neste dossier, damos voz à esquerda e aos movimentos sociais ucranianos sobre o que se passa no seu país. Dossier organizado por Carlos Carujo.

24 de fevereiro de 2022. Uma das grandes potências do mundo invadia um país vizinho, sua ex-colónia. Sob os pretextos imaginários de uma “desnazificação” e/ou de uma suposta ameaça às suas fronteiras, a guerra eclodia no coração da Europa com o regime de Putin a avançar para a invasão da Ucrânia.

Foram muitos os que acharam que tudo iria acabar rapidamente. Uns, primeiro, com a vitória russa numa guerra relâmpago de um dos três grandes exércitos mundiais. Outros, depois, com uma derrocada russa face ao maior pacote de sanções económicas já aplicado pelos Estados Unidos e seus aliados.

Dois anos depois, os números de vítimas e de estragos acumulam-se, a economia russa tem resistido às sanções e parece não haver fim militar à vista no conflito. Para além disso, a fadiga do tempo roubou a empatia e a atenção inicial. Esta guerra foi, assim, normalizada.

Neste dossier, começamos por fazer um diagnóstico do estado económico dos beligerantes. O economista Michael Roberts analisa os dois lados: a dependência ucraniana da ajuda ocidental, a obsessão de Zelensky pelo “mercado livre”, mesmo quando tem de viver em economia de guerra, o facto de estar a deixar as multinacionais entrar em força no país; e a estabilização do controlo do Estado pelo regime russo, no qual as grandes empresas trabalham em estreita coordenação com os comparsas de Putin para maximizar lucros.

Por sua vez, o professor de relações internacionais Hubert Testard dedica a sua atenção a outra dependência, a que permitiu a sobrevivência de Putin depois de sanções e portas fechadas a Ocidente. A Rússia produziu uma enorme e rápida mudança de parceiros económicos: da Europa para a Ásia, à qual o seu destino está agora preso. Para ele, caiu com isto uma “nova cortina de ferro” na Europa, uma mudança que veio para ficar e que moldará o mundo nos próximos tempos.

Foram também muitos os que se dedicaram ao longo deste tempo a explicar o que acontecia na Ucrânia, muitas vezes aos próprios ucranianos. Em sentido diferente, desde o primeiro momento, o Esquerda.net tratou de dar voz à esquerda ucraniana. Neste triste aniversário, continuamos a fazê-lo.

Trazemos assim o ponto de vista das feministas ucranianas sobre estes dois anos de guerra e as dificuldades vividas pelas mulheres, dos sindicatos independentes sobre a situação social e a reforma laboral do governo ucraniano que pretende atacar os direitos dos trabalhadores em plena guerra e enquanto não se podem defender, do sindicato de estudantes Ação Direta sobre a resistência à mercantilização do ensino.

Para além disso, damos voz à socióloga Oksana Dutchak que critica a forma como o neoliberalismo do governo ucraniano está a dividir a sociedade ucraniana, ao mesmo tempo que explica o papel que uma revista de esquerda pretende ter, tanto internamente, quanto no diálogo com outras “periferias”. E à militante do grupo de esquerda Movimento Social, Viktoriia Pihul, que fala sobre o processo interno de normalização da guerra na sociedade ucraniana, como este fez regressar a política, ponderando questões como a mobilização para o exército, as recentes alterações nos comandos militares e os efeitos do declínio da ajuda militar norte-americana.

Houve também quem, à esquerda, fechasse os olhos às atrocidades da ocupação e à repressão interna do regime russo que se foi intensificando, procurando ver num governo de extrema-direita um elo fundamental de uma fictícia cadeia anti-imperialista. A historiadora ucraniana Hanna Perekhoda critica os defensores da teoria das “esferas de influência” das potências e analisa a ideologia do Estado russo e o imaginário dos seus círculos dirigentes enquanto elementos essenciais para perceber o que se passa. Estes estão convencidos que a Ucrânia é uma criação de inimigos externos.

O cientista político russo Ilya Budraitskis, por outro lado, defende que se assiste a uma fascização do regime que se estabilizou com base na repressão dos dissidentes, no nacionalismo étnico russo e na diabolização de todos os grupos que o ameaçam. Ele acredita que Putin tenciona continuar a guerra até conseguir a mudança de regime na Ucrânia e a transformação da Ucrânia numa semi-colónia russa.

Por fim, no comunicado em que assinala esta data, o Movimento Socialista Russo solidariza-se com o povo ucraniano e crítica da invasão de Putin de um país que ele “simplesmente acredita que não deveria existir.