Dois anos de guerra na Ucrânia: um ponto de vista das feministas ucranianas

O interesse pela Ucrânia diminui mas os desafios enfrentados pela sua sociedade não. A insegurança económica e social aumentas. Muitas mulheres perderam casa e emprego e foram deixadas sozinhas a lidar com a situação quando os maridos foram mobilizados. Entrevista com o grupo Oficina Feminista feita por Patrick Le Tréhondat.

Passados dois anos de guerra, como veem a situação na Ucrânia?

Nos últimos dois anos, a sociedade ucraniana passou por mudanças drásticas no seu modo de vida e nas suas visões. Esta transformação também é evidente entre as ativistas feministas e as mulheres em geral.

A guerra despertou uma discussão sobre se os movimentos feministas devem ser inequivocamente anti-militaristas. Numa época em que os ucranianos enfrentam a ameaça de aniquilação física, a postura anti-militarista de algumas feministas ocidentais parece ser um privilégio, cega para as ameaças e os perigos da vida real que as mulheres ucranianas enfrentam diariamente. As feministas ucranianas adotaram uma mensagem fundamental durante estes tempos: a Ucrânia precisa de armas. Ela precisa de armas defensivas, como sistemas de defesa aérea para proteger os seus céus dos constantes ataques de mísseis russos que devastam as cidades ucranianas e matam civis, bem como de armas ofensivas para recuperar os territórios ocupados do agressor.

A guerra afetou a todos e todas na Ucrânia. Embora algumas regiões pareçam “normais” e livres de hostilidades diretas, os ataques com rockets e as ameaças constantes da Rússia persistem. Quase toda a gente tem um ente querido a servir no exército ou perdeu alguém ao longo destes anos. Os ucranianos são forçados a superar traumas pessoais e coletivos, incertezas sobre o futuro, ameaças militares diárias e dificuldades quotidianas, ao mesmo tempo em que demonstram resiliência e pedem apoio e assistência internacional.

Infelizmente, nos últimos dois anos, o interesse geral pela Ucrânia tem diminuído, ao mesmo tempo que os desafios enfrentados pela sociedade ucraniana não diminuíram. Estes desafios continuam a existir ou evoluem para novas formas. Os problemas vão desde atender às necessidades de milhares de pessoas deslocadas internamente das cidades da linha de frente até descobrir como fornecer eletricidade às cidades durante os bombardeamentos da infraestrutura de energia. Os ucranianos precisam demonstrar constantemente a sua flexibilidade, criatividade e resiliência para enfrentar os novos desafios impostos pela guerra.

As feministas, assim como todos os ucranianos e ucranianas, foram forçadas a adaptar-se a novas funções e desafios trazidos pela guerra em grande escala. Muitas feministas estão a servir no exército ou voluntariaram-se ativamente para atender às necessidades da linha de frente. As organizações feministas na Ucrânia continuam o seu trabalho, agora também lidando com as necessidades decorrentes da guerra, como o auxílio a pessoas deslocadas internamente e o enfrentamento de outros desafios. As necessidades das mulheres na sociedade ucraniana aumentaram significativamente. A insegurança económica e social está a aumentar, juntamente com a perda de empregos. Muitas mulheres perderam as suas casas e empregos e foram deixadas sozinhas para lidar com a situação quando os seus maridos foram mobilizados para a frente de batalha.

A Ucrânia ainda não tem uma voz reconhecida em muitas discussões internacionais. Muitas vezes, a comunidade internacional a priva do seu poder e a vê como uma região de interesse da Nato ou da Rússia. Os ucranianos e ucranianas devem lutar não apenas pela sua sobrevivência física, mas também pelo direito de se representar a si mesmos e a seus interesses, preservando continuamente a sua liberdade de ação. Estas questões também são relevantes para as feministas ucranianas, que devem considerar não apenas a sua sobrevivência e o fornecimento de ajuda dentro do país, mas também lidar com mal-entendidos e, ocasionalmente, atitudes paternalistas das feministas ocidentais.

No entanto, também houve mudanças positivas para a comunidade feminista ucraniana. Em junho de 2022, o governo ucraniano ratificou a Convenção de Istambul sobre a Prevenção e o Combate à Violência Contra a Mulher e à Violência Doméstica. Esta tinha sido uma das principais reivindicações das feministas ucranianas durante vários anos e um passo em direção a uma maior integração da Ucrânia na União Europeia. Além disso, as mulheres soldados ucranianas estão a defender ativamente os seus direitos no exército, o que deu início a mudanças na organização militar e adaptações para melhor acomodar as necessidades das mulheres. A perceção do feminismo na Ucrânia está a mudar, com a sociedade a começar a vê-lo não apenas através de estereótipos sobre mulheres ativistas mas também como uma imagem coletiva de mulheres ativistas militares, ativistas que abrem abrigos e ajudam a resolver problemas humanitários e mulheres voluntárias, entre outras. Essa mudança ajuda a criar novas conexões com parceiros e a mudar a perceção geral do feminismo.

Qual é a situação da vossa associação e dos seus projetos?

Com o início da invasão russa em grande escala, a Oficina Feminista foi forçada a ampliar o seu campo de atividade. A guerra em grande escala não apenas fez aumentar os problemas sociais existentes, mas também criou novos desafios, o que nos levou a implementar novas orientações. A nossa equipa abriu a unidade de Resposta à Crise, cuja principal tarefa é ajudar mulheres e crianças afetadas pela guerra. Um dos públicos-alvo são as pessoas deslocadas internamente. Percebemos que as pessoas que foram forçadas a deixar as suas casas precisavam de segurança, apoio, comunicação, lazer, auto-realização e desenvolvimento. Estas necessidades são básicas e essenciais para a vida humana. É por isso que criámos abrigos – espaços seguros que ajudam a criar confiança na comunidade, aumentar a coesão social e envolver os deslocados internos na vida comunitária. Desde a sua criação, os abrigos têm sido o lar de 80 pessoas, algumas com os seus animais de estimação (três gatos, dois ratos, dois cães). Inicialmente, montámos três abrigos, e agora um deles ainda está a funcionar ativamente. Percebemos rapidamente que as mulheres e crianças afetadas pela guerra precisam não apenas de um lugar para ficar, mas também de apoio complexo para superar as suas experiências traumáticas e viver uma vida plena. Também fornecemos assistência individual para resolver os problemas diários enfrentados pelas residentes do abrigo. Outro aspeto importante do nosso apoio foi a organização de grupos para filhos das mulheres deslocadas internamente, um programa para ajudar as mulheres idosas de baixos rendimentos, cursos de alfabetização digital e apoio psicológico para a comunidade. E esta lista não está completa.

Apesar dos esforços ativos da nossa organização para enfrentar os desafios da invasão em grande escala, novos desafios trazem despesas imprevistas, por exemplo, a compra de geradores para manter o gabinete a funcionar durante os ataques à infraestrutura de energia do país. A busca de financiamento para as atividades existentes e para as novas atividades não está a ficar mais fácil. A imprevisibilidade e a complexidade do planeamento, a dificuldade de atender às exigências dos parceiros ocidentais durante uma invasão em grande escala e a exaustão geral contribuem para tornar a captação de recursos um desafio adicional.

O que esperam para o ano de 2024?

A esperança é um privilégio a que não nos podemos permitir durante uma invasão em grande escala. Há ações concretas e apoio de que precisamos e solicitamos. Como organizações feministas ucranianas que trabalham para defender os direitos humanos e ajudar as mulheres a superar as consequências do conflito armado, temos uma compreensão profunda do contexto e das necessidades atuais de nosso público, bem como das melhores maneiras de prestar essa assistência. Sem apoio financeiro, informativo e humanitário, não conseguiremos trabalhar de forma sistemática e criar mudanças. Não estamos apenas à espera que a Oficina Feminista continue as suas atividades e tenha recursos financeiros e humanos suficientes; estamos a lutar constantemente por isso. Também estamos cansadas de sermos excluídas das discussões sobre possíveis formas de ajudar as mulheres ucranianas. Este ano é crucial para levarmos a voz das feministas ucranianas às plataformas internacionais, defendendo as suas necessidades e reivindicando o seu direito de falar nas discussões globais. Em geral, queremos apenas sobreviver em 2024, em todos os sentidos da palavra. E, como todos os ucranianos e ucranianas, acreditamos e lutamos todos os dias para alcançar nosso principal objetivo: a vitória da Ucrânia e o fim da agressão russa.

Oficina Feminista é um grupo de feministas ucranianas.

Patrick Le Tréhondat é um ativista e escritor francês membro da editora francesa Syllepse.

Texto publicado originalmente na página da revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.