Vivemos uma crise de regime em que a hegemonia só é conseguida pela brutalização das relações sociais, com a criação de insegurança para a maioria das pessoas.
Não foi um bom ano. E, se deixa uma certeza, é de que todos os fatores de tensão que revelou só se podem agravar em 2024. Neste texto final, quero apontar duas das questões em que o novo ano será revelador.
A crise do regime
A primeira é a mais evidente: vivemos uma crise de regime. Mas porque é que é uma crise de regime? Por uma razão essencial, a hegemonia só é conseguida pela brutalização das relações sociais. A lista é imensa: precarização e degradação salarial das qualificações, ou a marginalização dos jovens; aumento dos custos da saúde, ou a atemorização dos idosos; uso de imigrantes sobre-explorados para suportarem a restauração ou a agricultura; voragem de guerras e militarização, ou a banalização do mal e dos seus títeres, de que Netanyahu é agora a forma mais eloquente. Em comum está a criação de insegurança para a maioria das pessoas. À população que pede ordem é oferecida a desordem dos bufões como solução de autoridade; quanto mais agravam a crise do regime que fez o seu poder, mais espaço encontram para a bufonaria.
Este movimento é impulsionado pela monstruosidade das regras europeias. Passámos do pagamento a Erdogan para prender imigrantes ao sepulcro silencioso dos imigrantes no Mediterrâneo, e Meloni chegou ao poder. Passámos da violência das troikas nos países do Sul para as novas regras que certificam a discricionariedade: Portugal é obrigado a cumpri-las, a Alemanha não — e a AfD está à frente das sondagens. Estes regimes, que se baseiam no poder do centro, já se transformaram ao longo de décadas, sobretudo com a uniformização liberal que Blair e Hollande lhe impuseram, e que o longo consulado do PS em Portugal sempre prosseguiu. Do que não há dúvida é que o sucesso deste liberalismo é medido pela desorganização dos hospitais portugueses ou pela espiral dos preços da habitação: o mercado funciona mesmo, só que não para as pessoas. Enfrentar o liberalismo é a condição da democracia.
A esquerda pró-Putin
A segunda questão são algumas mudanças numa parte da esquerda, que não são as mais promissoras. A invasão da Ucrânia pelo exército de Putin, embora a tenha explicado pela vontade de restabelecer as fronteiras do império czarista, entusiasmou quem se revê na nostalgia da URSS. Mais ainda, despertou a obediência ao que é visto como um fator de resistência a Washington e, por essa via, apresenta o eixo Pequim-Moscovo como o novo farol internacional. Esta visão está a reorganizar um espaço político, impondo-lhe aliás múltiplas incoerências sem resposta: deve-se fechar os olhos ao reacionarismo religioso de Putin, ou ao seu ataque aos direitos das mulheres? Deve-se aceitar a exploração dos trabalhadores chineses, com regras que indignariam qualquer sindicato decente, ou a promoção do capitalismo predatório que, com as privatizações europeias, se torna parte da dominação económica em Portugal (energia, banca, saúde) e noutros países? Pode-se aceitar o princípio do partido único ou a repressão do direito de opinião? Aceitar estas regras não é a condição da esquerda, é a sua agonia.
A liberdade de imprensa é tão indispensável para a nossa vida como a respiração
O exemplo mais expressivo desta corrente campista é a formação de um novo partido alemão, dirigido pela ex-porta-voz do Die Linke, Sarah Wagenknecht. Esta nova força não resulta somente de uma incapacidade estrutural em criar blocos unitários, deixando prevalecer a tendência de fragmentação, tão característica da política de carreiras. É igualmente o produto da evolução da esquerda conservadora, que apresenta a defesa do trabalho como contraditória com a igualdade entre homens e mulheres ou uma estratégia ambiental justa e, mais ainda, a integração de imigrantes. Por isso, procura disputar a base social da extrema-direita com uma mistura de regresso ao passado e política xenófoba: no mês passado, quando da discussão sobre regras europeias para a imigração, Wagenknecht afirmou que “a Alemanha já não tem lugar”, na sequência da sua persistente denúncia de Merkel por “ter aberto as portas”. A consequência é reclamar mais deportações.
Esta escolha é enunciada como uma forma de soberanismo, no que toca um ponto essencial. Só há democracia com soberania nacional e a ideia de uma democracia internacional tem sido uma fraude que anula a base da decisão popular, recusando a autodeterminação das nações. No entanto, a democracia exige formas de cooperação internacional, sem as quais só lhe restaria, como no caso de Wagenknecht, a ideia ordoliberal de uma “economia social de mercado”, uma prosperidade baseada na opressão das economias periféricas e que recusa a transição energética. Não resulta, nem sequer para a Alemanha. Sem políticas inclusivas, sem horizonte de futuro, sem pragmatismo na defesa prioritária dos bens públicos que afetam a vida da maioria da população, sem compromisso democrático mobilizador, a esquerda perderia o sentido.
E despedida
Termina aqui a minha crónica neste suplemento do Expresso, chegou o momento de me dedicar a outros projetos. Escrevi sempre com total liberdade, fosse sobre economia, sobre política e ocasionalmente sobre livros, mesmo quando, e tantas vezes aconteceu, a minha opinião entrava em conflito com a linha editorial ou a do diretor. Agradeço ao jornal e a quem o lê a atenção, os comentários, as frequentes críticas e as sugestões, que me lembraram todas as semanas que a liberdade de imprensa é tão indispensável para a nossa vida como a respiração.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 29 de dezembro de 2023