"Putin expôs-se como um rei que vai nu"

Author

Alexandr Zamyatin Federico Fuentes

Date
July 1, 2023

Alexandr Zamyatin, ex-autarca da esquerda russa e impedido de concorrer às últimas eleições, sublinha que ambas as forças em confronto no passado fim de semana "representam um mal extremo para a Rússia". Entrevista de Federico Fuentes.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia sofreu uma reviravolta surpreendente no dia 23 de junho, quando milhares de soldados pertencentes à Companhia Militar Privada Wagner, uma força mercenária ligada ao regime russo, atravessaram a fronteira de onde tinham estado a combater as forças ucranianas e começaram a marchar em direção a Moscovo.

Chamando à ação uma "Marcha pela Justiça" e não uma tentativa de golpe de Estado, o chefe da Wagner, Yevgeny Prigozhin - um oligarca e até então aliado próximo do Presidente russo Vladimir Putin - disse que os seus protestos eram dirigidos contra a forma como o Ministério da Defesa russo estava a lidar com a guerra. Em contrapartida, no dia seguinte, Putin denunciou a ação como uma "revolta armada" e prometeu castigar os que estavam no "caminho da traição".

Durante quase uma década, a Wagner funcionou como uma ala paramilitar do Estado russo, desempenhando um papel fundamental na Ucrânia, bem como em várias nações africanas onde foi destacada para proteger os lucros russos provenientes das minas de ouro. A maior parte das forças que compõem a Wagner partilham uma ideologia de extrema-direita e fascista.

Os diferendos entre o Ministério e a Wagner chegaram recentemente a um ponto crítico no que respeita ao financiamento, tendo sido registados confrontos entre as duas forças no interior da Ucrânia. Poucos dias antes da rebelião armada, Prigozhin denunciou como mentira as afirmações de Moscovo de que a invasão se justificava devido a uma suposta ofensiva ucraniana planeada para a região do Donbass em fevereiro de 2022.

No entanto, quase ao mesmo tempo que as forças de Wagner chegavam à cidade de Voronezh, a meio caminho de Moscovo, foi celebrado um acordo a 24 de junho, no qual parece que todas as acusações contra Prigozhin e as forças de Wagner envolvidas na rebelião seriam retiradas, sendo Prigozhin autorizado a viajar para a Bielorrússia e as tropas de Wagner a regressar à Ucrânia.

Para ajudar a decifrar estes acontecimentos, Federico Fuentes, do Green Left, falou com o ativista da esquerda russa Alexandr Zamyatin. Antigo membro eleito do Conselho Municipal de Zyuzino, em Moscovo, Zamyatin foi impedido de concorrer às eleições do ano passado pelo regime de Putin devido a uma publicação feita dois anos antes no Facebook.

No entanto, juntamente com o ativista anti-guerra e sindicalista Mikhail Lobanov, Zamyatin ajudou a coordenar Vidvyzheniye (Nomeação, que também significa És o Movimento), uma plataforma de candidatos progressistas que conseguiu ganhar lugares em Moscovo. Zamyatin é professor e coautor de "For Democracy: Local Politics Against Depoliticisation".

Para começar, pode dar-nos uma ideia do estado de espírito atual das ruas russas, na sequência da tentativa de Prigozhin de marchar sobre Moscovo e do acordo que se seguiu entre ele e Putin?

Só posso falar em termos da situação em Moscovo, onde me encontro. Hoje [25 de junho], não há sinais de acontecimentos extraordinários, embora o presidente da câmara, [Sergey] Sobyanin, tenha anunciado um fim de semana prolongado, declarando o dia 26 de junho feriado. Para além disso, tudo o resto é absolutamente rotineiro e normal.

Como caracteriza os acontecimentos recentes e as forças envolvidas? Porque é que acha que ocorreram agora? E existem paralelos úteis que possam ser estabelecidos com outras situações semelhantes, quer históricas quer atuais?

Há muitos paralelos históricos que podem ser traçados, mas não quero destacar nenhum em particular. No entanto, o que este facto em si indica é que este tipo de rebeliões não é assim tão raro.

Escrevi recentemente sobre o fenómeno Prigozhin, onde salientei que ele é movido por duas contradições. Para mim, o motim parece ser um desenvolvimento lógico. Era evidente para todos os observadores que esta situação era uma bomba-relógio, embora ninguém soubesse quando iria explodir.

O grupo Wagner é um exército privado liderado por um aventureiro carismático que recebeu enormes recursos e cobertura mediática durante a guerra com a Ucrânia. Prigozhin apercebeu-se da existência de uma contradição importante entre as elites e os estratos mais baixos do exército e decidiu tirar partido dessa contradição. Ao mesmo tempo, o Kremlin, que o tinha apoiado, estava cada vez mais preocupado com a ascensão de Prigozhin e começou recentemente a tomar medidas para o eliminar.

Prigozhin apercebeu-se disso e decidiu que era altura de apostar tudo.

Porque é que acha que as forças envolvidas chegaram a um acordo tão rapidamente?

Penso que as partes chegaram rapidamente a um acordo porque se aperceberam de que as suas posições eram igualmente fracas. Prigozhin não podia ter tomado o poder em Moscovo porque não dispunha de um aparelho administrativo nem de apoio popular suficiente. Em Rostov-on-Don, a administração civil permaneceu a mesma, ele não a alterou.

O Kremlin poderia ter esmagado o exército de Prigozhin com as suas próprias forças perto de Moscovo, mas tal ação teria sido muito dispendiosa em termos de apoio político, porque o núcleo do eleitorado de Putin tem muitas simpatias por Prigozhin.

Ambas as partes avaliaram sensatamente a inutilidade de uma escalada e concordaram com algumas condições sobre as quais nada sabemos. Ao mesmo tempo, penso que Prigozhin será, a dada altura, enganado por Putin e morto.

Os meios de comunicação ocidentais retrataram os acontecimentos como um claro enfraquecimento de Putin. Considera que esta é uma avaliação correta ou é provável que Putin reforce a sua posição no poder em consequência do resultado?

Os cientistas políticos calcularam que os autocratas têm muito mais probabilidades de ver a sua posição reforçada depois de sobreviverem a uma tentativa de golpe de Estado do que de ver a sua posição enfraquecida ou de permitir um processo de democratização. Mas estas são apenas estatísticas abstratas.

Nesta situação específica, é muito visível que Putin ficou incrivelmente enfraquecido. Desde os primeiros dias do seu governo, houve uma determinação e uma brutalidade muito importantes no estilo político de Putin. Ontem, ele expôs-se como um rei que vai nu.

Mesmo que tudo isto seja apenas uma ilusão externa e que tudo internamente continue sob o seu controlo, esta ilusão foi sentida por todos os observadores, o que não pode deixar de representar um golpe no seu poder.

Num artigo recente publicado no seu canal Telegram, fala dos "80%" que permanecem despolitizados na sociedade russa. Há sinais de que estes acontecimentos recentes tenham aumentado o sentimento anti-guerra na Rússia e, talvez mais importante, possam levar alguns sectores da sociedade a dar um salto para uma ação política progressiva contra o regime?

Infelizmente, não vejo quaisquer sinais desse género. Pelo contrário, ontem vimos como muitas pessoas saíram para as ruas de Rostov-on-Don para saudar alegremente as forças Wagner. Isto é muito mau para o regime de Putin, mas não é representativo das forças anti-guerra ou progressistas. Ao mesmo tempo, temos de compreender que se trata de uma pequena amostra de pessoas que saíram à rua para apoiar aqueles que consideram seus aliados.

Em contrapartida, para as pessoas com opiniões anti-guerra e progressistas, esta situação gerou um sentimento de estar a ser confrontado com uma ameaça existencial e a necessidade de fugir, rezando para que as forças wagnerianas não tomassem o poder e viessem bater à porta.

No caso de uma nova escalada, a politização poderia afetar camadas mais amplas da população, entre as quais existe um grande cansaço da guerra e uma exigência de mudanças sociais, económicas e políticas no país.

Há mais alguma coisa que gostaria de acrescentar?

Gostaria de sublinhar que ambas as forças em confronto representam um mal extremo para a Rússia e para a maioria da população do nosso país. Nenhuma delas pode conduzir o país a algo de bom.

Por conseguinte, as pessoas progressistas e anti-guerra não podem simpatizar com nenhum dos lados. Muitos esperavam que o êxito da rebelião fosse um meio de pôr fim à ditadura. Mas esta é uma ideia errada. Pode não ser óbvio visto de fora, mas aqui, dentro da Rússia, sabemos com certeza que a Rússia só vai perder neste confronto.

Entrevista publicada por Green Left(link is external). Traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.