"Se quisermos entender a extrema-direita no Século XXI, temos que olhar para a Rússia"

O início da invasão da Ucrânia não foi apenas uma questão de política externa mas também uma forma de disciplinar a sociedade russa. E quando se olha para os primeiros meses desta invasão percebe-se como internamente as regras do jogo mudaram completamente na Rússia. Entrevista a Ilya Budraitskis.

Berço da maior revolução socialista da história, a Rússia passou por intensas transformações sociais, económicas e políticas ao longo do século XX. Da ascensão de Estaline ao atual regime de Putin, pouco restou da experiência organizativa dos sovietes e do legado socialista que caracterizou os primeiros anos da Revolução de 1917. Ilya Budraitskis, militante socialista russo, é categórico ao afirmar que o atual regime de Putin apresenta todos os traços do que poderíamos caracterizar como um fascismo do século XXI.

Ilya Budraitskis é militante e teórico político. Viveu em Moscovo durante muitos anos, onde consolidou a sua militância, e é autor de diversos textos sobre política, cultura e história intelectual russa. Tem artigos publicados em revistas académicas, como a Radical Philosophy, New Left Review, Slavic Review e o South Atlantic Quarterly, e também em importantes portais de meios de comunicação críticos, como a Jacobin, London Review of Books, E-Flux, Le Monde Diplomatique, Inprecor e Open Democracy. A sua coleção de ensaios Dissidents among Dissidents: Ideology, Politics and the Left in Post-Soviet Russia (ainda sem edição em português) foi publicada pela editora Verso em 2022. Ele também é membro do conselho editorial do portal russo socialista anti-guerra Posle.media.

Na sua passagem pelo Brasil, Budraitskis conversou com o Radar Internacional sobre o processo de despolitização da sociedade russa pós-URSS, os impactos do neoliberalismo, as características do regime Putin e as suas estratégias de aproximação ao Sul Global. Por fim, comentou sobre as possibilidades de organização da esquerda russa hoje.

Gostaríamos de começar por perguntar como caracterizas o regime de Putin: é um regime nacionalista? Fascista? Podes falar um pouco mais sobre isso?

Sim, eu diria que este regime existe há mais de 20 anos e, durante todo este período, passou por uma séria transformação. Começou como um regime bonapartista neoliberal e transformou-se num tipo de ditadura aberta fascista. E eu acredito que esta transformação num regime fascista começou depois do início da invasão da Ucrânia. Posso apresentar uma análise mais extensa sobre como essa transformação aconteceu ao longo destes anos.

Isto aconteceu devido a duas tendências paralelas existentes no interior da sociedade russa, especialmente durante a última década. Porque se olharmos para a transformação do regime de Putin, podemos dizer que o primeiro período da sua existência, isto é, os anos 2000, foi caracterizado pelo crescimento económico, pela implementação de reformas neoliberais e por um profundo processo de despolitização da sociedade russa, que trouxe como consequência a desarticulação e a alienação da maior parte das formas de auto-organização política.

Mas em 2011 e 2012, algo importante acontece. Depois da crise económica de 2009, a economia russa ainda não se tinha recuperado, o crescimento económico ainda não tinha sido retomado e a economia russa encontrava-se estagnada. No mesmo período, a despolitização dá lugar a um novo movimento de protestos iniciado no fim de 2011 principalmente em Moscovo, mas que também tem repercussão em muitas grandes cidades russas. Era um movimento contra o regime, cujas reivindicações eram na sua maioria políticas, e não sociais, mas que de alguma forma acredito que também refletiu o crescente descontentamento sobre a situação económica e social.

Este movimento emergiu exatamente no momento em que Putin decidiu voltar à presidência e candidatar-se às eleições presidenciais de 2012, concorrendo para o seu terceiro mandato. Diferentemente das suas campanhas na década de 2000, esta não foi marcada por um processo despolitizado, mas sim por uma ofensiva conservadora e anti-revolucionária. Então a partir deste momento, é possível dizer que se inicia uma viragem conservadora no regime de Putin. O discurso apresentado por ele é de que as manifestações não eram um movimento de oposição interna mas sim um grupo de agentes externos, de traidores nacionais, de pessoas que querem destruir a família tradicional, os valores tradicionais russos e assim por diante. Então, a partir desse momento a retórica extremamente conservadora é adotada na ideologia deste regime.

Em 2014, a Rússia inicia o envolvimento militar na Ucrânia, com a anexação da Crimeia. Para Putin, isto não era apenas uma questão de política externa, da recuperação da influência imperial da Rússia no espaço pós-sovietico mas também uma questão de política interna. Tratava-se da criação de uma unidade patriótica da sociedade russa em torno do seu presidente. É visível o quão rápido Putin recuperou a sua popularidade na sociedade russa depois da anexação da Crimeia.

Mas o efeito da Crimeia, o efeito do comício em torno da bandeira, não durou muito tempo. Três anos depois do que ficou conhecido como a “reunificação da Crimeia”, a popularidade de Putin começa a diminuir e uma nova onda de manifestações iniciou-se na Rússia. A partir de 2017, um novo movimento começa a emergir contra a corrupção, contra o autoritarismo do regime e, no fundo, contra a profunda desigualdade social existente na sociedade russa. Estas manifestações ficaram muito associadas à figura de Alexei Navalny, mas na verdade não se tratava de um movimento apenas dos seus apoiantes pessoais. Do lado do regime, tudo isto foi articulado como a luta contra uma “revolução colorida”.

Então qual era o maior problema na Ucrânia? De acordo com Putin era Maidan, era a destituição ilegal do governo pelo povo e isto era absolutamente inaceitável. Então era necessário impedir que isso acontecesse na Ucrânia e na Rússia. Putin adota então uma postura contra essa possível revolução porque, para ele, todas as revoluções que ocorreram na Rússia, incluindo a de 1917, vieram como produto da atividade de inimigos externos. De acordo com ele, todas as revoluções são uma conspiração, são processos que vêm de fora para desestabilizar o Estado russo. E, de facto, este pensamento anti-revolucionário está muito presente na versão oficial da história russa, nos livros de escolas, nas grandes exposições historiográficas, nos quais não apenas 1917 é apresentado como uma espécie de motim anti-russo organizado pelo Ocidente mas até mesmo os levantamentos populares do século XVIII, como o de Pugachev que foi apresentado como uma conspiração vinda do exterior.

Neste sentido, é possível ver como o início da invasão não foi apenas uma questão de política externa mas também uma forma de disciplinar a sociedade russa. E quando se olha para os primeiros meses desta invasão, percebe-se como internamente as regras do jogo mudaram completamente na Rússia. Desde o início da invasão, não é possível criticar a guerra de nenhuma forma. Não é permitido nem até falar sobre este evento enquanto uma guerra. Usar a palavra “guerra” é um ato criminoso de acordo com a lei russa, porque oficialmente não é uma guerra mas sim uma “operação militar especial”. Este é o termo que se deve usar para descrever esse evento.

Toda os meios de comunicação social independentes que tinham permanecido até esse momento no país foram expulsos uma semana depois da invasão e atualmente é possível ver esta tendência repressora da recuperação da unidade total da Rússia, como Putin o apresenta. Para ele, nós enquanto sociedade russa somos consolidados em torno da ideia de luta contra o Ocidente, contra qualquer tipo de inimigo interno e externo e nenhum tipo de crítica ainda é permitida no país. Por exemplo, talvez tenha visto que na semana passada Boris Kagarlitsky foi preso em Moscovo. Isto aconteceu como parte de uma crescente campanha de repressão das manifestações que já deixou um saldo de muitos presos políticos. E quando Putin foi questionado numa conferência de imprensa sobre Kagarlitsky, claro que disse que era a primeira vez que ouvia esse nome, como sempre faz, mas também falou: “nós estamos agora num conflito militar com o nosso vizinho. É por isso que tudo o que for feito contra a nossa unidade nacional deve ser eliminado. Esta é a razão para todos estes casos”.

Penso que se falarmos do movimento fascista hoje, de qual a cara do fascismo no século XXI, deveríamos olhar para o que já está a acontecer na Rússia. Porque estamos num contexto onde já não é necessário um movimento de massas vindo de baixo, pode ser uma viragem fascista vinda de cima. Se virmos, o fascismo clássico, que emergiu no século XX, era sempre a combinação de movimentos de massa com a classe dominante, que usava o movimento de massas para transformar o regime político. Hoje, para as sociedades que já foram muito destruídas pelo neoliberalismo, com a destruição de qualquer tradição de organização, de solidariedade etc, nessas sociedades já não é preciso um movimento de massas fascista. É por isso que acho relevante falar sobre a transformação fascista do Estado russo e penso que nesse sentido o caso russo não é único. Não é uma exceção da tendência global, mas sim a imagem dela. Se quisermos entender como estes movimentos de extrema-direita podem transformar a sociedade, devemos ter a Rússia como exemplo.

Agora falando um pouco mais sobre a política externa de Putin, ele tem-se aproximado do continente africano e do Sul Global de modo geral. Poderia falar um pouco mais sobre isso? Como nós do Sul Global devemos ver esta aproximação com Putin e a guerra?

Essa é uma pergunta muito interessante, porque definitivamente Putin está a tentar explorar esse sentimento anti-ocidental, anti-EUA, anti-colonial e está a propor, no lugar da atual ordem mundial, um outro tipo de modelo, que é chamado de mundo multipolar. E o que é o mundo multipolar? É a existência de civilizações particulares ou Estados-civilizações particulares. “Estados-civilizações” são um importante termo já usado na nova versão da doutrina da política externa russa adotada no começo deste ano. Estado-civilização não significa o mesmo que Estado-nação, mas sim que os verdadeiros Estados soberanos existem como uma espécie de civilização – como os Estados Unidos, a China e a Rússia –. Por exemplo, digamos que o Brasil é um país-chave para a civilização sul-americana. Basicamente, isso significa que deve controlar o continente inteiro para restaurar a verdadeira soberania do Brasil e para controlar o domínio orgânico dos seus interesses nacionais como um Estado-civilização. O mesmo é verdade para a Rússia, claro, porque o Estado-civilização russo é algo muito maior do que as atuais fronteiras do Estado russo. Então, por exemplo, a Ucrânia organicamente e historicamente pertenceu ao Estado-civilização russo. O mesmo provavelmente é verdade para a China, para recuperar o seu próprio Estado-civilização.

Basicamente, se quiser encontrar as raízes deste conceito, pode ler o livro do Samuel Huntington, “O choque de civilizações”, onde ele propõe quase a mesma coisa. A ideia de Huntington era que o Ocidente, os Estados Unidos, não deveriam ter a pretensão de propor nenhuma ordem mundial, mas apenas serem responsáveis pela sua própria civilização. Então as civilizações ocidentais, como os Estados Unidos e a Europa Ocidental seriam parte de uma mesma civilização e os Estados Unidos seriam o principal Estado dela. Isto significa que o Ocidente não deveria ser muito ambicioso em relação à sua influência e deveria focar-se nos seus próprios valores, na sua própria religião, nas suas próprias tradições e assim por diante, dando a possibilidade para que outras civilizações tenham as suas próprias tradições. Por exemplo, vocês tem as vossas tradições brasileiras, têm o tipo tradicional brasileiro de regime político, que é provavelmente a ditadura militar, porque é o melhor regime para servir os interesses do seu Estado-civilização, e têm os valores tradicionais que são particulares da sua civilização e que devem ser preservados. Este é basicamente o conceito de mundo multipolar. É um mundo sem nenhum senso de universalismo, sem nenhum senso de auto-determinação nacional, porque não é sobre nação, mas sim sobre civilizações, e definitivamente não é um mundo mais justo e igualitário do que o mundo em que nós vivemos, talvez seja até pior.

Por exemplo, se olharmos para África e todas as especulações sobre o que a Rússia tem falado sobre a África e o que tem efetivamente feito lá, é o grupo Wagner a chave para entender a política externa russa no continente africano. Ver-se-á absolutamente o mesmo tipo de método colonial, porque a Rússia atualmente é quase o principal fornecedor de armas no continente africano e é um país que está a tentanr explorar e extrair os recursos naturais da mesma forma que as potências ocidentais coloniais e imperialistas. Se olharmos para o que o grupo Wagner está a fazer na República Centro-Africana, onde basicamente controlam as principais minas de ouro e o extraem em troca de apoio militar para o atual governo, este é o típico modo neocolonial de fazer política – providenciar apoio militar para uma elite governante em troca do monopólio de extração de recursos naturais desse país –. Eu não vejo nenhuma diferença desta política em relação à França ou ao Reino Unido. A única diferença é que o grupo Wagner representa outro “Estado-civilização”. Na República Centro-Africana, por exemplo, eles promoveram ativamente a religião ortodoxa. Já organizaram missões ortodoxas, treinaram padres locais etc.

A caminho do final da entrevista, gostaria de perguntar sobre as possibilidades de organização da esquerda dentro da Rússia. Como a esquerda atua em relação ao governo Putin? Quais as possibilidades de atuação dentro do Partido Comunista. Como é a organização da resistência dentro da Rússia?

A questão da esquerda na Rússia é bastante complicada, porque eu não acredito que grupos e partidos que apoiam a invasão da Ucrânia possam ser considerados de esquerda ou socialistas. Podemos ver que a direção do Partido Comunista e uma grande quantidade de grupos estalinistas próximos do Partido Comunista apoiam totalmente a invasão da Ucrânia, o que significa que eles se mantêm integrados no sistema político de Putin. Este sistema foi construído e desenvolvido ao longo destes 20 anos de regime Putin e, dentro desse sistema, a direção do Partido Comunista não tem nenhuma capacidade de agência política. É totalmente orientada pelo Kremlin.

O Partido Comunista Russo e o estalinismo em geral na Rússia estão muito ligados ao legado imperialista do final do período estalinista. Durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e logo depois, Estaline explorou muito o legado do nacionalismo russo. Acho que a tradição estalinista na Rússia tem esse elemento de chauvinismo russo e a continuidade disso certamente esteve muito presente nas posições do Partido Comunista Russo e de outros grupos estalinistas depois do início da invasão.

Mas claro que existe outra esquerda na Rússia, a esquerda que esteve em oposição às ambições imperialistas do seu próprio governo, formada por grupos socialistas, trotskistas e anarquistas. E como já expliquei, atualmente não é possível expressar abertamente críticas à guerra, que é a principal questão política no país. É por isso que não é possível para a esquerda russa anti-guerra atuar legalmente no país neste momento. Muitos ativistas-chave que já eram conhecidos pelas suas posições anti-guerra e anti-Putin saíram do país. Na minha organização, o Movimento Socialista Russo, a maior parte da direção já saiu do país. Kagarlitsky foi preso justamente porque continuou a criticar a guerra estando ainda no país. Esta é a razão pela qual ele foi preso.

Há ainda alguns membros dos grupos anti-guerra que estão a tentar fazer alguma coisa na Rússia, mas de forma semi-clandestina, como discussões políticas fechadas, eventos de propaganda com convites pessoais, divulgação de informação através do Telegram ou Youtube. Mas quem está na Rússia precisa seguir a legislação russa atual, o que significa que não pode fazer nenhum comentário sobre a guerra. Não apenas sobre o nome dessa guerra, que não é uma guerra, mas uma operação militar especial, mas também sobre a atuação do exército russo em geral. Porque agora existe uma lei na Rússia que criminaliza todas as fake news sobre o exército russo e a definição de fake news é muito simples: qualquer uso diferente do das declarações oficiais do Ministério da Defesa da Rússia. Então, por exemplo, se disseres que o exército russo cometeu crimes de guerra, podes ser presa imediatamente e cumprir uma pena, em geral, de cinco anos.

É possível ser presa mesmo por publicar nas redes sociais, como Facebook ou Instagram?

Sim, sim. E não é apenas uma possibilidade, há vários casos desse tipo. Centenas de pessoas foram presas ou multadas pelas suas publicações nas redes sociais. Mas em relação ao Instagram e ao Facebook, essas redes sociais já foram proibidas no território russo, então não é permitido usá-las. O Youtube e o Telegram ainda são permitidos, mas não sabemos por quanto tempo. Há rumores de que as autoridades russas vão provavelmente bloquear o Youtube até ao fim deste ano. Já foi proposta uma alternativa, uma espécie de plataforma russa totalmente controlada pelo governo para substituir o Youtube, que é bastante popular na Rússia