Eric Toussaint Sushovan Dhar
Nesta entrevista conduzida por Sushovan Dhar, Eric Toussaint analisa e disseca a ajuda concedida à Ucrânia desde o início da agressão russa. Toussaint mostra que esta ajuda é frequentemente concedida sob a forma de empréstimos - e não de donativos - que a Ucrânia terá de reembolsar ao longo de vários anos. Isto levanta a questão da futura reconstrução do país e aponta para a imposição de novas medidas neoliberais - privatizações, apropriação de terras agricultáveis, de recursos naturais - em nome do pagamento da dívida.
Sushovan Dhar: Qual é a situação da dívida ucraniana 15 meses após a invasão do seu território pela Rússia?
Éric Toussaint: Antes de mais nada, queria deixar claro que a invasão da Ucrânia pela Rússia é uma agressão injustificável e condenável. Perante esta invasão, o povo ucraniano tem razão em resistir e merece o apoio internacional, tal como outros povos agredidos precisam de todo o nosso apoio, quer se trate do povo palestiniano (vítima da ocupação e da agressão do Estado israelita há décadas), do povo afegão (vítima da intervenção dos Estados Unidos e dos seus aliados de 2001 a 2021), do povo iraquiano (vítima da invasão dos Estados Unidos e dos seus aliados em março de 2003), do povo curdo e de muitos outros povos. Desde os anos 90, a Rússia tornou-se um país capitalista que aplica uma política imperialista violenta, tal como os Estados Unidos e os países imperialistas da Europa Ocidental. Não há dúvida de que a lista de agressões cometidas por Washington e seus aliados é muito mais longa do que a da Rússia, mas isso não dá a Putin o direito de invadir um país soberano e atacar o seu povo. Ao invadir a Ucrânia, deu uma aparência de legitimidade à NATO, que deve ser combatida sem tréguas para conseguir a sua dissolução. No fundo, trata-se de se opor muito claramente às políticas e aos interesses de todos os imperialismos. Trata-se de se opor ao imperialismo da potência capitalista russa e trata-se de se opor à NATO. Neste caso, trata-se de apoiar a resistência do povo ucraniano face à invasão, sem criar a menor ilusão quanto aos objetivos prosseguidos pelos países imperialistas que apoiam o governo de V. Zelensky, utilizando a guerra e fazendo-a durar em função dos seus interesses.
A dívida externa da Ucrânia no início de 2023 alcançava [132 bilhões de dólares US>https://tradingeconomics.com/ukraine/external-debt], cerca de 75% do PIB. Este valor não inclui a dívida interna. Se somarmos a dívida interna e externa, o total é superior a 100% do PIB.
Em julho de 2022, os países credores aliados da Ucrânia anunciaram a suspensão do pagamento da dívida e, em março de 2023, esta suspensão foi prorrogada até 2027. No entanto, esta situação não diz respeito a todos os credores e, em especial, ao FMI e aos credores privados.
Também é importante ter em conta que, neste caso, durante esta suspensão parcial do pagamento, os juros a pagar continuarão a ser calculados e serão adicionados ao capital emprestado que, de acordo com os acordos assinados, deverá ser reembolsado na íntegra.
Grande parte da ajuda financeira prestada a Ucrânia vem sob a forma de novos empréstimos
De fato, uma grande parte da ajuda financeira prestada pelos aliados da Ucrânia assume a forma de empréstimos, o que significa que a ajuda é, nitidamente, uma nova dívida. Isto é particularmente claro e escandaloso no que respeita à chamada ajuda prestada pela UE e pelos Estados-Membros da UE. Por exemplo, a ajuda adicional à Ucrânia no valor de 18 bilhões de euros, anunciada com grande alarde pela UE em novembro de 2022, será fatiada em empréstimos a serem reembolsados na íntegra e com juros [1]. Este anúncio foi posteriormente confirmado em dezembro de 2022. No total, a UE e os seus 27 membros anunciaram até agora que irão emprestar à Ucrânia meios financeiros no valor de 55 mil milhões de euros, que serão desembolsados ao longo dos próximos anos. As autoridades ucranianas congratulam-se com esta medida, mas trata-se de um «doce veneno» para a população porque, de acordo com os anúncios atuais, o reembolso do capital começará daqui a cerca de dez anos. Isto significa que o governo é encorajado a endividar-se porque as suas necessidades são grandes e porque não terá de começar a pagar durante o seu mandato. O ónus principal do reembolso da dívida recairá sobre os futuros governos e, inevitavelmente, sobre o povo.
Para ter uma comparação: a dívida grega alcançava em 2009, antes do empréstimo de resgate do FMI e da UE (Comissão Europeia, Estados-Membros da zona euro e BCE), cerca de 126% do PIB; no início de 2015, antes da chegada ao governo do partido de esquerda Syriza, a dívida ascendia a 180% do PIB; em 2020 atingiu 206% e no início de 2023 cerca de 171%. Em valores absolutos, a dívida pública grega antes da ajuda do FMI e da UE era de 301 bilhões de euros; em 2015, depois de 5 anos de empréstimos do FMI e da UE, atingiu 311 bilhões de euros e no início de 2023 chegou a 356 bilhões de euros. Em suma, a chamada ajuda da UE e do FMI, sob a forma de empréstimos, são doces venenos que mantêm o país sob o controlo dos credores. Todos os números apresentados nas duas frases acima sobre a dívida grega provêm de https://fr.countryeconomy.com/gouvernement/dette/grece. Para uma análise crítica do processo de endividamento da Grécia entre os anos 90 e a chegada do Syriza ao governo em 2015, ver o relatório da Comissão da Verdade sobre a Dívida Grega, cujos trabalhos coordenei em 2015, em particular os capítulos 1, 2 e 3: Relatório Preliminar da Comissão da Verdade sobre a Dívida Pública Grega Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque.
A conclusão para a Grécia e a Ucrânia: a chamada ajuda financeira sob a forma de créditos representa um custo político e social muito elevado: privatizações que são muitas vezes realizadas em benefício de empresas estrangeiras; salários mais baixos; precariedade das condições de trabalho; legislação que restringe o exercício do direito à greve e à negociação coletiva... Além disso, a dívida aumenta e representa um meio de pressão permanente dos credores sobre as autoridades do país.
Os Estados Unidos aplicam o método do Plano Marshall
Os Estados Unidos optaram por reproduzir o que fizeram com o Plano Marshall, no final dos anos 40, para reconstruir as economias dos seus aliados da Europa Ocidental, ou seja conceder subvenções em vez de empréstimos. Até à data, prometeram mais de 73 mil milhões de euros. Parte da assistência financeira que prestam sob a forma de subvenções é gasta em produtos e serviços vendidos por empresas americanas. Os EUA se deram o papel do policial bom da aérea financeira frente aos policiais maus: a UE, o FMI, o Banco Mundial, o BEI (Banco Europeu de Investimento), o BERD (Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento)... No que respeita ao FMI, ao Banco Mundial, ao BEI e ao BERD, tal como no caso da UE, trata-se de empréstimos a serem totalmente reembolsados, aos quais acrescem juros significativos.
Então, é evidente que a ajuda irá aumentar consideravelmente a dívida da Ucrânia nos próximos anos.
O aumento será da ordem das dezenas de bilhões de dólares, mas só se tornará visível gradualmente. Segundo os meus cálculos, para os empréstimos dos países da Europa Ocidental (UE e outros, como a Grã-Bretanha), do FMI, do Banco Mundial e do BEI, a dívida para com estes credores aumentará pelo menos de 50 bilhões de dólares.
Sushovan Dhar: Então, aquilo que é anunciado como uma ajuda generosa e solidária é, em grande parte, constituído por dívidas que serão reclamadas ao povo ucraniano?
Éric Toussaint: Sim, é muito claro. Vejamos o caso do FMI. O crédito do FMI à Ucrânia, desde a invasão, representa um pouco mais de 15 bilhões de dólares (ou 11,6 bilhões de DSE, a moeda do FMI), que serão desembolsados gradualmente. A política do FMI é ser sempre reembolsado na totalidade (tal como o Banco Mundial), mesmo nos casos em que outros credores concordem em reduzir a dívida. Além disso, exige taxas de juro elevadas, que podem ir até 8% ao ano.
O FMI aplica sobretaxas a impõe severas condições antipopulares
Grosso modo, para um «pequeno» empréstimo, o FMI pede uma taxa de juro de 2%; assim que a soma excede um determinado montante, aplica sobretaxas (ver o guia elaborado pela Eurodad sobre as sobretaxas aplicadas pelo FMI https://www.eurodad.org/a_guide_to_imf_surcharges ), o que conduz a taxas reais que variam entre 4,5% e 8%, de acordo com o caso. No caso específico da Ucrânia, Daniel Munevar, da Eurodad, efetuou um cálculo preciso em 2021 sobre as sobretaxas aplicadas pelo FMI à Ucrânia antes da invasão.
Desde o início da guerra, em fevereiro de 2022, o FMI não parece aplicar a suspensão dos pagamentos com base no calendário de reembolsos que figura no seu sítio Web. É provável que o Fundo tenha convencido alguns aliados dos Estados Unidos (G7 + Bélgica, Lituânia, Países Baixos, Polónia, Eslováquia e Espanha) a contribuir para um fundo gerido pelo FMI, do qual retira o dinheiro que a Ucrânia tem de devolver ao Fundo durante o período de suspensão de pagamentos, que vai até 2027 [2].
Importante lembrar que o FMI condiciona a concessão de créditos à aplicação de políticas neoliberais duras. No caso da Ucrânia, desde 2000, as autoridades deste país assinaram 18 acordos de crédito com o FMI. E por cada um deles, o governo ucraniano envia uma Carta de Intenções que especifica o que as autoridades se comprometem a fazer para cumprir os requisitos do FMI. Estas cartas de intenções preveem toda uma série de medidas que vão contra os interesses das populações e acompanham um enorme aumento da dívida.
Desde 2000, o FMI tem obtido das autoridades ucranianas a implementação da estratégia de choque, com medidas tipicamente neoliberais: liberalização e promoção do comércio externo, liberalização dos preços, redução dos subsídios ao consumo para as classes trabalhadoras, deterioração do acesso a toda uma série de serviços básicos. O FMI encorajou igualmente a aceleração do processo de privatização das empresas públicas. De cada vez, o FMI fixou um objectivo de redução do défice público. O FMI acrescentou a precarização do mercado de trabalho, facilitando os despedimentos nos sectores público e privado. Os efeitos das políticas recomendadas pelo FMI foram dramáticos. Foi registrado um empobrecimento extremamente grave da população. De tal forma que, em 2015, a Ucrânia estava no último lugar de todos os países europeus em termos de salários reais.
Sushovan Dhar: O FMI, apesar da guerra em que a Ucrânia está mergulhada, continua aplicando as mesmas políticas neoliberais?
Éric Toussaint: A resposta é afirmativa. Por exemplo, o FMI quer utilizar a guerra para aprofundar a privatização de empresas que não conseguiu obter nos últimos 20 anos. É o caso da empresa pública de gás, a Naftogaz. Esta será uma questão importante nos próximos anos. Isto pode ser inferido da seguinte passagem: «Serão necessárias reformas ambiciosas no sector da energia para aumentar a concorrência, melhorar os mecanismos de mercado e reduzir os grandes riscos quase-fiscais. [3] (Fonte: IMF Executive Board Approves US$15.6 Billion under a New Extended Fund Facility (EFF) Arrangement for Ukraine as part of a US$115 Billion Overall Support Package. Página 4. https://www.imf.org/-/media/Files/Publications/CR/2023/English/1UKREA2023001.ashx acedido em 11 de Maio de 2023)
Sushovan Dhar: E quanto à assistência dos países da UE? Disse que não se tratava de donativos, mas de novas dívidas...
Eric Toussaint: Sim, é esse o caso, uma grande parte da ajuda da UE é constituída por empréstimos com juros. Nitidamente, a UE tomou como modelo o que fez com a Grécia a partir de 2010: acordou com o FMI impor ao país medidas cujo carácter neoliberal e antipopular é óbvio.
A UE aplica a nefasta receita já imposta a Grécia
A ajuda da UE está condicionada ao acordo da Ucrânia com o FMI. E, inversamente, o acordo da Ucrânia com o FMI exige que as autoridades ucranianas implementem (contra) reformas estruturais que são necessárias para que a Ucrânia cumpra as condições de adesão à UE. O documento do FMI de Março de 2023 afirma: "O programa incluirá uma abordagem em duas fases:
a primeira fase visa assegurar a estabilização macroeconómica e empreender reformas estruturais fundamentais enquanto a guerra ainda está em curso; a segunda fase, quando os combates ativos tiverem diminuído suficientemente, centrar-se-á no reforço das políticas macroeconómicas e no lançamento de um pacote mais vasto de reformas estruturais destinadas a restabelecer a sustentabilidade externa a médio prazo, a apoiar o crescimento sustentado e a facilitar o caminho da Ucrânia para a adesão à UE". [4] (idem, p. 4).
Isto significa, entre outras coisas, aumentar as privatizações, permitir ainda mais investimentos estrangeiros em sectores de interesse para os capitalistas ocidentais, ...
Entre os bens que lhes interessam está a enorme quantidade de terras aráveis que cobiçam. Lembremo-nos de que a Ucrânia é um celeiro da Europa e do mundo. É uma questão de aprofundar a possibilidade de os investidores estrangeiros do sector agroalimentar adquirirem grandes quantidades de terras cultivadas muito férteis.
Sushovan Dhar: E como poderá a Ucrânia reconstruir-se depois de toda a destruição sofrida desde fevereiro de 2022 e que vai continuar enquanto pagar dívidas antigas e novas? O que é que os credores têm em mente?
Éric Toussaint: Os credores sabem muito bem que o pagamento total da dívida de acordo com o calendário planejado é impossível. Não só o sabem, como fazem questão que seja assim é, e ter uma alavanca.
Como tantas vezes acontece, o peso da dívida será utilizado como moeda de troca no momento da paz, numa data impossível de prever.
Para conseguir que a Ucrânia favoreça o mais possível os interesses dos credores ocidentais, a cenoura [incentivo] será a possibilidade de um acordo para reduzir parte da dívida.
A negociação para uma reestruturação da dívida ucraniana será uma oportunidade para os credores obterem o máximo de benefícios à custa do povo ucraniano e dos recursos naturais da Ucrânia. Washington, que até à data concedeu mais em subvenções do que em empréstimos, utilizará o FMI e o BM, que domina, para garantir que os seus interesses tenham prioridade. O poder imperialista dos EUA vai fazer valer o peso do armamento que fornece à Ucrânia e a dependência do país para a sua defesa. Os imperialistas europeus e norte-americanos utilizarão a NATO.
Como uma reestruturação/redução da dívida deve envolver também outras potências como a Turquia e a China, as autoridades destes países tentarão fazer valer os seus interesses e apresentar as suas exigências.
Ambos os países, e a China em particular, são credores. A China também está presente (tal como a Rússia, aliás) no FMI e no Banco Mundial e irá apresentar as suas exigências para obter a sua parte do bolo.
Sushovan Dhar: Existe uma dívida interna?
Eric Toussaint: Sim, existe uma dívida interna antiga, de antes da guerra, e uma dívida interna nova, porque o governo de Zelensky emite títulos de dívida chamados «obrigações de guerra». No gráfico da próxima pergunta/resposta, vemos que o governo vendeu 5,9 bilhões de dólares de novos títulos no primeiro trimestre de 2023. Estes títulos pagam uma taxa de juro que varia entre 8,5 e 12%, se forem emitidos em coroas ucranianas, ou entre 2 e 3,5%, se forem emitidos em dólares, ou entre 2 e 2,7%, se forem emitidos em euros (informações sobre as taxas de juro fornecidas por Yuliya Yurchenko, economista ucraniana e membro do movimento de esquerda ucraniano Sotsialnyi Rukh).
Sushovan Dhar: Em termos concretos, que ajuda financeira recebeu a Ucrânia?
Eric Toussaint: De acordo com o site ucraniano financiado por uma fundação de George Soros, pelo Congresso dos EUA através do National Endowment for Democracy e pela embaixada sueca, "em 2022, a Ucrânia recebeu 31,1 mil milhões de dólares em subvenções e empréstimos estrangeiros, uma média de 3,1 mil milhões de dólares por mês de guerra. No entanto, os pagamentos não têm sido estáveis nem regulares, com alguns meses a registar montantes extremamente elevados ou baixos. A irregularidade dos pagamentos tem prejudicado a execução orçamental”.
Em 2023, segundo o mesmo site, foram recebidos os seguintes montantes entre 1 de janeiro de 2023 e 3 de maio de 2023:
Gráfico 1 : 16,8 bilhões de dollares de financiamento estrangeiros pagos em 2023 [5]
Financiamento adicional pago em 2023, até 3 de maio 2023, em US dólares
Source : Ministério das finanças • Outros – Allemagne, Espagne, Finlande, Irlande, Suisse, Belgique, Islande, Estonie
Fonte do gráfico: https://ces.org.ua/en/tracker-economy-during-the-war/
Traducão das legendas :
Foreign grants : Doações do exterior
Foreigns loans : Empréstimos externos
Domestic bonds : Títulos da dívida ucraniana emitidos internamente
EU : Unão europea
USA : Estados-unidos
IMF : FMI
World Bank: Banco mundial
UK : Reino Unido
Others : Outros
O gráfico a seguir evidencia o quanto ods meios financeiros propiciados pelas potencias imperialistas que apoiam a Ucrânia (principalmente Ameriac doNortie,União Europea,Reino Unido) são essencias para compensar o deficit fiscal do governo do Zelenski.
Gráfico 2 : Os financiamnetos externos são uma fonte essencail para compemsar o deficit fiscal do governo (em bilhões de US dolares)
Fonte: NBU, Ministerio das finanças, CES research • Finaniamentos externos e necessidades de financiamnetos relativos ao orçamento fiscal do estado, em bolhões de US dolares. Gráfico proveniente de https://ces.org.ua/en/tracker-economy-during-the-war/
Traducão das legendas:
Budget deficit : Déficit fiscal
Debt repayment : Reembolso da dívida
Foreign Financing : Financiamentos externos
Apr 22 : April 2022
Jul 22 : Julho 2022
Oct 22 : Outubro 2022
Jan 23 : Janeiro 2023
Apr 23 : Abril 2023
Consequentemente, a Ucrânia está muito dependente das potências que fornecem essas finanças. Estas aproveitam-se disso para promover os seus interesses económicos e geoestratégicos.
Sushovan Dhar: E quanto à dívida reclamada pela Rússia à Ucrânia?
Eric Toussaint: Trata-se de uma dívida que remonta a 2013. A Ucrânia suspendeu o pagamento desta dívida a partir de dezembro de 2015, o que levou a um processo judicial em Londres. A Rússia está pedindo aos tribunais britânicos que ordenem retomada dos pagamentos pela Ucrânia.
Abordei esta questão na entrevista que lhe dei em abril de 2022 e, desde então, tem havido desenvolvimentos. Vamos rever o curso dos acontecimentos.
A decisão final é importante porque cerca de 15% dos contratos de dívida soberana estão sujeitos à lei inglesa. A decisão abrirá um precedente e influenciará outros litígios
Em dezembro de 2013, quando a Ucrânia tinha como presidente Viktor Yanukovych, que estava intimamente ligado ao regime de Putin, a Federação Russa convenceu o Ministério das Finanças da Ucrânia a emitir títulos na Bolsa de Valores de Dublin, na Irlanda, por 3 bilhões de dólares. Tratou-se de uma primeira emissão que poderia ter sido seguida de outras para atingir gradualmente os 15 bilhões de dólares. Assim, a primeira emissão de títulos foi de 3 bilhões de dólares e todos os títulos vendidos em Dublin foram comprados pela Federação Russa através de uma empresa privada à qual tinha confiado esta operação, a Law Debenture Trust Corporation plc. A taxa de juro a pagar era de 5%. No ano seguinte, a Rússia anexou a Crimeia, que até então fazia parte da Ucrânia. O governo ucraniano mudou na sequência de mobilizações populares, cuja natureza exata é discutível, uma vez que houve tanto uma verdadeira rebelião popular como uma intervenção da direita e da extrema-direita. Houve também um desejo das potências ocidentais, nomeadamente de Washington, de aproveitar o descontentamento popular para enfraquecer a posição de Putin e reforçar a sua própria posição. O novo governo continuou, durante algum tempo, a pagar a dívida à Rússia. No total, foram pagos à Rússia 233 milhões de dólares em juros. Depois, a partir de dezembro de 2015, quando chegou a hora de reembolsar o capital (= os 3 bilhões de dólares emprestados em Dezembro de 2013), que vencia a 21 de dezembro deste ano, o governo decidiu suspender o pagamento da dívida.
Em suma, o governo ucraniano justificou a suspensão do pagamento explicando que a Ucrânia tinha o direito de tomar contramedidas contra a Rússia, porque esta última tinha atacado a Ucrânia e anexado a Crimeia em 2014. E, de facto, nos termos do direito internacional, um Estado tem o direito de tomar contramedidas e suspender a execução de um contrato em tais circunstâncias.
A Law Debenture Trust Corporation plc, que representa os interesses da Federação Russa, levou o caso aos tribunais britânicos em Londres. Foi estabelecido que os títulos tinham sido emitidos em conformidade com o direito inglês e que, em caso de litígio, os tribunais britânicos seriam competentes. Por conseguinte, a Law Debenture Trust Corporation plc intentou uma ação contra a Ucrânia, solicitando aos tribunais britânicos que ordenassem à Ucrânia que retomasse o pagamento. O processo teve início em 2016.
Houve uma primeira sentença, seguida de um recurso contra a sentença. Finalmente, realizou-se uma sessão no Supremo Tribunal do Reino Unido em 11 de Novembro de 2021 (esta sessão pode ser vista na íntegra no sítio Web do Supremo Tribunal do Reino Unido: https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2018-0191.html ).
É importante notar que, num primeiro tempo, os magistrados do Reino Unido - incluindo o principal magistrado que foi responsável pelas fases iniciais do processo - não era outro senão William Blair, irmão de Tony Blair, que até há pouco tempo estava muito ligado à Rússia de Putin em termos de negócios. Este magistrado estava inclinado a decidir a favor da Rússia. O poder judicial do Reino Unido quer continuar atrativo para os investidores. O irmão de Tony Blair emitiu um acórdão em março de 2017 no qual não aceitou uma série de argumentos óbvios apresentados pela Ucrânia. William Blair considerou que não tinha havido uma verdadeira coação da Rússia sobre a Ucrânia [6]. Considerou que não se trata de um conflito entre Estados. Seguiu o ponto de vista da Rússia de que a empresa que comprou os títulos ucranianos (The Law Debenture Trust Corporation P.L.C) é uma empresa privada. Mas esta empresa atua diretamente em nome da Rússia e foi a Rússia que efetivamente comprou todos os títulos. Posteriormente, o Tribunal de Recurso contestou o acórdão de William Blair e, em 2021, o processo chegou à fase final no Supremo Tribunal.
Uma vez que a Rússia tinha invadido a Ucrânia desde o final de fevereiro de 2022, causando enormes perdas de vidas e cometendo crimes de guerra, era difícil ver o Supremo Tribunal decidir a favor da Rússia contra a Ucrânia, apoiado pelos Estados Unidos, a Grã-Bretanha, o resto do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão) e uma dúzia de outros países, principalmente da Europa Ocidental. O julgamento, que foi proferido em março de 2023, foi fortemente influenciado pela evolução dramática do conflito. Por último, o Supremo Tribunal reconheceu que a Rússia tinha exercido coacção (duress) contra a Ucrânia. Concedeu à Ucrânia o direito a um novo julgamento, que será apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça britânico.
No entanto, a maioria dos 5 juízes recusou-se a considerar que a Ucrânia tinha o direito de utilizar contramedidas contra a Rússia. A juíza afirmou que, embora o direito internacional permita que um Estado utilize contramedidas contra outro Estado que o esteja a atacar ou a ameaçar atacar, tal não é aplicável nos tribunais do Reino Unido porque o direito inglês não prevê nem tem em conta tais situações! Apenas um juiz afirmou que a Ucrânia tinha todo o direito de utilizar contramedidas contra a Rússia. Ver o resumo oficial do acórdão aqui: https://www.supremecourt.uk/press-summary/uksc-2018-0191-0192.html e o acórdão completo aqui: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2018-0191-0192-judgment.pdf
O sistema judicial britânico está, portanto, a ganhar tempo até que seja conhecido o resultado do conflito.
A decisão final é importante porque, a nível mundial, cerca de 15% dos contratos de dívida soberana estão sujeitos à lei inglesa. Quase 80% estão sujeitos à lei do estado de Nova Iorque. A decisão abrirá um precedente e influenciará o tratamento de outros litígios.
Sushovan Dhar: Quais são as suas conclusões relativamente a todas as dívidas reclamadas à Ucrânia?
Enquanto os governos aliados de Washington, o FMI e o Banco Mundial se fazem de generosos, estão na verdade aumentando a dívida da Ucrânia e tentando lucrar com a invasão russa e a guerra
Eric Toussaint: Enquanto os governos aliados de Washington e as instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, fingem ser muito generosos, estão na verdade aumentando a dívida da Ucrânia e tentam lucrar com a situação criada pela invasão russa e pela guerra em curso. Este não é o tema desta entrevista, mas é evidente que as potências ocidentais, especialmente Washington, e as grandes empresas do complexo militar-industrial pressionando para o prolongamento da guerra.
A dívida que a Ucrânia está acumulando serve agora e no futuro como alavanca nas mãos dos credores para continuar a implementar o modelo neoliberal e antipopular. Em particular, os credores exigirão privatizações (de empresas, recursos naturais, terras aráveis, etc.) a fim de se apropriarem de parte da riqueza da Ucrânia.
A dívida exigida à Ucrânia deve ser anulada, tal como a dívida dos países do Sul global. Quando exigimos a anulação da dívida reclamada à Ucrânia, não estamos a reclamar um privilégio para o povo ucraniano, mas sim a exigir a anulação geral das dívidas ilegítimas, seja no Norte ou no Sul do planeta. Todos os povos devem ser libertados do jugo das dívidas ilegítimas.
Notas
[1] https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/QANDA_22_6701 consultado em 11 de maio de 2023. Extrato: “Following the European Council meeting of 20-21 October 2022, the Commission has today proposed a support package for Ukraine of up to €18 billion. This will come in the form of loans that would be disbursed as of 2023 through a Macro-Financial Assistance+ (MFA+) instrument.
[2] Deduzido de um comunicado oficial do FMI: IMF Executive Board Approves US$15.6 Billion under a New Extended Fund Facility (EFF) Arrangement for Ukraine as part
of a US$115 Billion Overall Support Package. Voici l’extrait qui permet de réaliser cette déduction :
“A significant group of Fund shareholders reaffirm their recognition of the Fund’s preferred creditor status in respect of the amounts currently outstanding to the Fund by Ukraine, plus any purchases under the extended arrangement. These shareholders comprise the G7 and the following countries : Belgium, Lithuania, the Netherlands, Poland, Slovak Republic, and Spain. They further undertake to provide adequate financial support to secure Ukraine’s ability to service all of its obligations to the Fund, in accordance with the Fund’s preferred creditor status and complementing the Fund’s multilayered risk management framework.’’ Cela veut dire que les pays du Sud membres du FMI et la Chine ont refusé cette formule. Source : https://www.imf.org/-/media/Files/Publications/CR/2023/English/1UKREA2023001.ashx consultado em 11 de maio de 2023
[3] »Ambitious reforms will be required in the energy sector to enhance competition, improve market mechanisms, and reduce large quasi-fiscal risks.”
[4] “The program will comprise a two-phased approach : the first phase focuses on securing macroeconomic stabilization and undertaking critical structural reforms while the war is still ongoing ; the second phase once active combat has subsided sufficiently, will focus on further entrenching macroeconomic policies and embarking on a more expansive set of structural reforms to restore medium-term external viability, support sustained growth, and facilitate Ukraine’s path to EU accession.”
[5] https://ces.org.ua/en/tracker-economy-during-the-war/
[6] Ver o comentário de Monica Feria-Tinta and Alister Wooder, «Sovereign debt enforcement in English Courts : Ukraine and Russia meet in the Court of Appeal in USD 3 bn Eurobonds dispute» https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=ee2a9c0d-a27f-4b31-8e25-2f1e70c37f79