Paulo Portugal
O realizador ucraniano Sergei Loznitsa há muito que trabalha uma dimensão do real em que o ser humano convive em ambiente de permanente conflito. Mesmo quando se serve da ficção para ilustrar temas de uma realidade recorrente. No caso de Donbass, um filme apresentado em Cannes, em 2018, sobre o conflito latente no leste da Ucrânia, desde 2014, pode ser encarado como uma ficção tornada em pós-realidade. Ou, dito de outra forma, como se a actual ‘operação militar’ russa, com tudo o que tem de surreal e grotesco, ganhasse subitamente uma representação capaz de rivalizar com os blocos noticiosos que há mais de três meses apresentam pedaços dessa mesma realidade. No entanto, este não será um ‘feitiço do tempo’, pois a História russa parece alinhar-se com o tal “presente infinito” de que Loznista fala na entrevista que nos concedeu a propósito de Uma Mulher Doce, no mesmo festival francês, numa altura em que já tinha completado o filme com quatro anos que agora chega às nossas salas para nos assaltar o presente.
É clínico o olhar na filmografia de Loznitsa sobre a população, russa e ucraniana, habituada a superar as maiores diversidades. Sejam as pessoas anónimas que recuperam água a partir de buracos na neve em Blockade/O Cerco de Leningrado (2005), as conversas entre passageiros numa paragem de autocarro, em Peyzah (2003), ou que dormem numa estação de comboio, em Polustanok (2000), em documentários, sempre apoiados em imagens de arquivo. Como o mais recente Funeral de Estado (2019) ou até o pungente Babi Yar. Contexto, apresentado ainda o ano passado, sempre em Cannes. Mesmo quando Loznitsa passou a abordar as instituições russas mais de perto, ainda que dento da ficção, como sucede com a agonia de um camionista em A Minha Alegria, em 2010, ou o prolongamento que em Uma Mulher Doce (2017), num mimetismo cruzado entre Stalin e Putin.
Tal como os elos que vão ligando estes diferentes filmes (ou retratos da realidade) de Loznitsa também Donbass parece articular diferentes histórias que narram as tensões de guerrilha nos territórios ocupados, agora apelidados de Nova Rússia, e a forma como a população civil é afectada. Talvez até aqui mesmo um ponto de ligação entre os seus mais recentes filmes, como Victory Day, sobre a anual celebração patriótica, ou, naturalmente, The Natural History of Destruction, recentemente apresentado festival do costume, embora circunscrito ao bombardeamento aéreo entre a Inglaterra e a Alemanha durante a 2ª Guerra Mundial.
Talvez por isso, ver agora (ou rever) Donbass é como penetrar no lado mais surreal da selvajaria da guerra que supera a oferta de qualquer serviço streaming. Digamos que há quatro anos atrás, a camada de excessos que parece adornar este filme até poderia gerar alguma licença lírica, algo que hoje adquire um sentimento de antecipação do real.
Num terreno minado pelo ódio e pela falsa propaganda, Loznitsa encena uma dúzia de episódios, em que um cast tremendo se entrega ao estilo de comédia ácida servido por alguns momentos de catárticos que ilustram bem como é fina esse limite entre a realidade e a sua própria fabricação. Tudo começa em ritmo acelerado, com uma abertura do dispositivo, mostrando a preparação de testemunhas que serão entrevistadas num contexto de um ataque urbano com milícias separatistas. Algo que terá uma ligação directa com o avassalador e chocante final, em que o plano da câmara de Loznitsa, ou melhor do insuperável operador romeno Oleg Mutu, se abre para se fixar nas diversas interpretações que se podem fazer dessa encenação.
Pelo meio, articulam-se episódios que combinam uma corrupção endémica, em ambos os lados, com elementos de extorsão, com quem beneficia do conflito ou, simplesmente, o resultado civil da contra-propaganda e desinformação. Desde o episódio em que uma ucraniana irrompe numa assembleia local para despejar um balde de fezes na cabeça do orador, ao político que demonstra as existências de alimentos e medicamentos no hospital, recentemente colocados para o efeito ou o proprietário de um SUV que se vê forçado a entregá-lo ao ‘esforço de guerra’; pelo meio, a arrogância diante de um jornalista alemão, bem como uma descida aos subterrâneos onde vive a população adquiriu novos hábitos de vida, ou ao prisioneiro ucraniano ‘fascista’ atado a um poste para o desabafo e ira da população. Ou até ao clímax do casamento diante da bandeira da Nova Rússia (região que nenhuma nação reconheceu), evocando a celebração da Novorossiya, territórios ocupadas pelo império russo no final do século XIX, compreendendo a região que hoje é disputada no terreno uraniano pelas forças de Putin.