Carlos Carujo
Os russos foram os primeiros a manifestar-se contra a invasão da Ucrânia.
Milhares têm sido presos, os órgãos de comunicação social independentes silenciados, as ameaças nacionalistas aumentam. Apesar de tudo, continua a haver na Rússia quem ousa desafiar o regime. Muitas dessas vozes situam-se à esquerda. E é preciso ouvi-las. Dossier organizado por Carlos Carujo.
Depois de Putin ter ordenado a invasão da Ucrânia, milhares de russos saíram às ruas para protestar contra a guerra. Este movimento tem enfrentado a repressão e as detenções em massa, tem resistido às ameaças nacionalistas e aos bloqueios à liberdade de informação mas continua a manifestar-se apesar de todas as dificuldades.
A 6 de março aconteceu um dos pontos mais altos deste embate. Com manifestações em mais de 69 cidades e mais de 5.000 detidos nesse dia. Vladislav Siiutkin questionava-se, depois daquilo a que chamou o “domingo da repressão”, sobre os efeitos do que tinha ocorrido.
Para além das manifestações, várias vozes da sociedade civil russa fizeram-se ouvir de outras formas. Dos protestos menos conhecidos aos que se tornaram mediáticos mundialmente como o da editora do canal estatal russo Channel One, Marina Ovsyannikova, que irrompeu pela emissão do canal com um cartaz contra a guerra e lançando palavras de ordem contra a invasão da Ucrânia. Petições e tomadas de posição conjuntas somaram-se. No final de fevereiro, mais de 600 cientistas e jornalistas de ciência declararam-se contra a guerra. O Movimento da Paz francês compilou vários dos apelos contra a guerra feitos na Rússia: pessoal médico, estudantes universitários, movimentos feministas, vegetarianos, deputados. E neste dossier juntamos a essas notícias um artigo de Marco Biasioli que analisa como vários dos músicos russos mais famosos que estão contra a invasão têm enfrentado a situação.
Também partidos e grupos políticos de esquerda têm tomado posição contra a guerra e contra o imperialismo russo. No Esquerda.net demos nota da tomada de posição do Movimento Socialista Russo no final de fevereiro e do manifesto da Coligação Socialistas Contra a Guerra no final de março. Lutz Brangsch na página da Fundação Rosa Luxemburgo referia outros partidos e movimentos como o Bloco de Esquerda russo que considera esta uma “guerra imperialista”, a plataforma Esquerda Alternativa que apela a uma “Ucrânia independente e a uma Rússia livre” e a Ação Autónoma que apela à participação nos movimentos de protesto.
Neste dossier, acrescentamos a posição conjunta assumida mais recentemente pelo Movimento Socialista Russo e pelo Movimento Social ucraniano contra o imperialismo russo.
E publicamos várias das análises feitas por militantes de esquerda russa sobre a guerra e o movimento anti-guerra. Imediatamente antes da invasão, Ilya Boudraitskis, historiador e autor de “Dissidentes entre Dissidentes, um livro que analisa a esquerda russa depois do fim da URSS, refletia sobre o poder da máquina de propaganda nacionalista/militarista de Putin e a sua capacidade de destruição das plataformas através das quais se expressavam as novas gerações militantes da oposição no país.
Alexei Sakhnin, que tinha sido um dos líderes do movimento de protesto anti-Putin entre 2011 e 2013 e que é agora membro do Conselho Internacional Progressista e dos Socialistas Contra a Guerra, num texto publicado originalmente a 22 de março, falava nos impasses enfrentados pela “operação militar especial” de Putin e de como, depois da retórica ofensiva, “qualquer compromisso de paz na frente ucraniana incluirá graves consequências para o governo russo”. Pelo contrário, para ele, só uma “democratização radical, na Rússia e além dela, permitirá estabelecer uma paz duradoura e relações amistosas entre os povos do antigo espaço soviético”.
O mesmo autor analisava mais tarde os dados sobre o apoio dos cidadãos do seu país à guerra para pensar qual deveria ser a estratégia da esquerda face ao movimento anti-guerra e a forma como esta se deve distinguir do liberalismo pró-ocidental, sublinhando que “os trabalhadores russos têm as suas próprias razões para lutar pela paz e que estas são independentes do Ocidente”.
Greg Yudin, um filósofo e sociólogo que foi espancado pela polícia e hospitalizado durante os protestos no início da guerra, afirma em entrevista que a Rússia caminha na direção de um Estado totalitário e que Putin agiu no sentido de destruir todas as redes políticas da sociedade civil antes do início da invasão.
Oxana Timofeeva, também filósofa e a viver em São Petersburgo, pensa que os cidadãos russos foram apanhados num “fogo cruzado”. A política externa do seu país é a guerra e a sua política interna é o terror. Aspetos que “não nos caíram em cima subitamente” mas “estão em gestação há anos, desde o momento em que Putin chegou ao poder em 2000”.
E Ella Rossman, investigadora e membro da coordenação da Resistência Feminista Anti-Guerra russa, revela como as feministas se têm organizado nestes tempos e como são parte fundamental do movimento contra a invasão. Segundo ela, as feministas que têm sido alvo de bullying por parte dos neonazis e ultranacionalistas russos ao longo dos últimos tempos, sabem bem que Putin é “hipócrita” quando fala da “desnazificação”. Ainda para mais quando o seu regime é um dos centros do neo-conservadorismo ao nível mundial, atacando os direitos das mulheres internamente e financiando grupos que o fazem noutros pontos do globo.
Para além disso, acrescentamos a análise da socióloga Karine Clément que é especialista no estudo das classes populares russas e que contesta a imagem de um povo russo “lobotomizado” que apoiaria em massa a guerra de Putin. Para ela, esta foi potenciada nas redes sociais até por opositores da guerra sem ouvir verdadeiramente o que estas pensam. Pelo contrário, seria preciso que parte desta classe média intelectualizada de forma a construir um novo imaginário que permitisse romper com o regime de Putin, democratizar verdadeiramente e redistribuir a riqueza.
Finalmente, recordamos a forma como o Esquerda.net foi retratando e noticiando a repressão, a corrupção e o apoio à extrema-direita durante o “reinado” de Putin.