Denis Pilash Amy Goodman Nermeen Shaikh
O cientista político e historiador Denis Pilash, também membro do Movimento Social ucraniano, fez esta semana o ponto de situação da guerra e da resistência em entrevista ao Democracy Now.
Denis Pilash é um cientista político e historiador ucraniano, membro da organização socialista democrática ucraniana Sotsialnyi Rukh (Movimento Social). É também um editor na Comuns: Revista de Crítica Social. Esta quinta-feira foi entrevistado por Amy Goodman e Nermeen Shaikh no programa Democracy Now!
Amy Goodman: Bem-vindo ao Democracy Now!, Denis. É um prazer tê-lo connosco. Pode começar por falar sobre a resistência na Ucrânia? Ouvimos falar muito sobre a resistência militar, mas se puder falar, em geral, do tipo de resistência que não tem cobertura?
Denis Pilash: Realmente, a Ucrânia destaca-se não só pela resistência militar, embora centenas de milhares de pessoas se tenham voluntariado quer para as Forças Armadas quer para as unidades de defesa territorial, mas também devido a milhões de pessoas que estão empenhadas precisamente nestes esforços humanitários e em manter as coisas a funcionar. Por exemplo, os trabalhadores essenciais, os trabalhadores ferroviários, os empregados da empresa ferroviária estatal, fizeram um trabalho verdadeiramente heróico ao evacuar milhões de pessoas que fugiam das regiões mais perigosas para as mais seguras. E, de facto, dezenas delas foram mortas. E muitas foram mortas no desempenho das suas funções. O mesmo se aplica aos trabalhadores da saúde, enfermeiros e médicos, que arriscam as suas próprias vidas para salvar outras. E mais uma vez, a Rússia está também a alvejar hospitais, e por isso, muitas destas pessoas também são mortas. E, em geral, temos estas redes espontâneas de solidariedade não hierárquica que surgiram no terreno em diferentes regiões e cidades do país, que ajudaram as pessoas que tiveram de se deslocar, e também que ajudaram a distribuir a ajuda humanitária, medicamentos, alimentos, etc. E no seu conjunto, isto constitui a espinha dorsal da resistência ucraniana.
Nermeen Shaikh: Gostaria de perguntar sobre a divulgação do relatório da Human Rights Watch sobre crimes de guerra em Bucha. Tinha dito em Março, há um mês, que os crimes de guerra de Putin estão a seguir os passos dos crimes de guerra cometidos por governos como os Estados Unidos. Mas desde estes massacres em Bucha, você disse que a analogia correta agora poderia ser o que a Indonésia fez após a ocupação de Timor Leste ou o que o Paquistão Ocidental fez ao Paquistão Oriental, agora Bangladesh, na guerra em 1971. Poderia explicar isso melhor?
Denis Pilash: Penso que se trata do mesmo crime de agressões militares que foi feito por muitos outros governos e outros imperialistas, também. E neste caso, a guerra de Putin na Ucrânia ou as suas guerras na Chechénia estavam – como a guerra de Ieltsin na Chechénia – na mesma linha com, digamos, Bush e Blair e os seus parceiros que atacavam o Iraque. Mas a intensidade destas atrocidades que foram reveladas com estas imagens horríveis de Bucha, Irpin, Borodyanka e outros subúrbios de Kiev, mostram-nos a todos uma dimensão de atrocidades, começando pela violência sexual, da tortura e até às execuções em massa. E aqui vemos também algum tipo de explicação ideológica por parte da máquina de propaganda russa que a Ucrânia, de certa forma, tem de ser limpa.
E isto leva-nos a estas analogias não só com, como muitos recordaram, Srebrenica e o que aconteceu nas guerras da ex-Jugoslávia nos anos 1990, mas mesmo ao que aconteceu, por exemplo, quando o ditador pró-americano Suharto ocupou Timor Leste e desencadeou atos de genocídio contra a população local nos anos 1970. Assim, vemos que em alguns lugares a realidade desta ocupação é tão brutal que leva a uma obliteração em massa de vidas humanas.
Nermeen Shaikh: E com isso, Denis, apoia a continuação do fornecimento de armas à Ucrânia, que está a aumentar exponencialmente agora, apesar de muitos dizerem que o fornecimento destas armas apenas prolongará a guerra?
Denis Pilash: Veja, como analogia, o fornecimento de armas soviéticas e chinesas ao Vietname também prolongou a resistência dos vietnamitas, e assim prolongaram a guerra, mas era à mesma uma agressão unilateral feita por uma potência imperialista – nesse caso, os EUA; neste caso, a Rússia de Putin. Isso serve para preservar vidas humanas que se perdem em todos estes ataques aéreos e bombardeamentos, porque os civis estão a morrer em massa em todo o país e nenhum lugar pode ser considerado verdadeiramente seguro, uma vez que alvos civis, incluindo escolas e hospitais, foram atingidos em muitas zonas. Então, por exemplo, ter armas antiaéreas protege realmente estas pessoas que estão escondidas nas suas caves, nos seus apartamentos e em outros lugares.
Temos de nos lembrar que a Rússia também foi abastecida com armas ocidentais, da Alemanha, França e de outros países, e que mesmo agora ainda é alimentada por estes pagamentos pelo petróleo e gás russos. Assim, pode dizer-se que há mais peças alemãs nos tanques russos do que munições americanas nas armas ucranianas.
Mas, em geral, precisamos de assegurar que esta assistência militar que é necessária à resistência ucraniana, irá mesmo para os ucranianos e não é apenas usada como pretexto para este aumento dos complexos militar-industriais nos outros países ocidentais, porque ninguém está a ganhar com o aumento da militarização da Alemanha ou dos EUA. São as pessoas no terreno, na resistência ucraniana, que precisam disto, e não os interesses destas empresas que devem ser preservados.
Amy Goodman: Denis Pilash, deixe-me perguntar-lhe sobre o Batalhão Azov, porque os EUA têm a regra de que as armas para a Ucrânia não podem para eles, mas neste momento com o influxo maciço de armas, não há maneira de rastreá-las até ao seu destino final. Você tem sido um crítico feroz da extrema-direita na Ucrânia. Qual é a sua opinião sobre isto? E é também um crítico feroz da expansão da NATO, e agora vemos a Suécia, vemos a Finlândia a dizer que querem aderir à NATO, embora pareça que uma das razões para esta invasão – a Ucrânia poder integrar a NATO – não era na verdade uma hipótese para os próximos anos.
Denis Pilash: Na verdade, foi apenas um pretexto. Foi trazido pela propaganda russa. Eu até penso que o principal promotor da NATO foi o próprio Vladimir Putin, que efetivamente empurrou – e estas foram as palavras, por exemplo, de Ilya Ponomarev, o único deputado do parlamento russo que votou contra a anexação da Crimeia – a Ucrânia para os braços da NATO. E agora ele está a fazer o mesmo com a Finlândia e a Suécia.
E em relação ao Azov, que já não é um batalhão há sete anos, mas um regimento na Guarda Nacional da Ucrânia, bem, é apenas uma unidade no seio da resistência geral. Agora julgo que existem quase meio milhão de pessoas integradas quer no exército quer nestas unidades de defesa territorial. E a maior parte dele está agora bloqueado em Mariupol, uma cidade a viver um cerco realmente brutal. E talvez as atrocidades lá, quando forem reveladas, se comparem com as da região de Kiev. Portanto, penso que, na realidade, neste momento esse grupo constitui uma fração minúscula da resistência militar geral ucraniana. E não creio que seja tão importante, tanto em termos de percentagem, como em comparação com o resto dos militares e a Guarda Nacional, etc., nem no contexto da sua influência política, porque a extrema-direita na Ucrânia nunca foi realmente popular, nem nunca teve uma base social de massas.
Nermeen Shaikh: Gostaria que me esclarecesse sobre um ponto que destacou noutra entrevista recente. Sobre o regimento Azov, disse que, cito, “tal como a nossa compreensão da corrupção da administração Abbas e da natureza de extrema-direita do Hamas … não deveria ser um obstáculo para ouvir o flagelo dos [palestinianos]”, também a presença da direita na Ucrânia não deveria ser uma forma de não ouvir o flagelo dos ucranianos. Poderia explicar melhor, como vê as duas situações como análogas?
Denis Pilash: Penso que qualquer analogia é – bem, podem estar ainda muito distantes – mas o cerne de ambas as situações é que é preciso realmente chegar às pessoas de baixo, das bases. É preciso ouvir a situação dos homens e mulheres que sofrem e que lutam, em ambos os casos. E na verdade, usando tudo isto, invocar os problemas que existem em todos os contextos é apenas um pretexto para permanecer neutro. Mas como disse o falecido Arcebispo Desmond Tutu, quando se é neutro num conflito entre um opressor e um oprimido, está-se na realidade a tomar o lado do opressor.
Assim, penso que tem sido dada demasiada atenção à extrema-direita na Ucrânia. E, na verdade, perdemos de vista a extrema-direita do outro lado da guerra. O sociólogo russo Greg Yudin mostra como o próprio regime russo se tornou cada vez mais um lado fascista, se estava a tornar uma ditadura aberta de extrema-direita. E esta guerra é um passo gigante não só para agitar todos estes sentimentos nacionalistas em toda a Europa de Leste noutros países, mas, antes de mais, impulsionar o sentimento ultranacionalista na Rússia e o aparelho repressivo na Rússia que suprime qualquer tipo de descontentamento e está quase a acabar com os protestos anti-guerra.
Assim, mais uma vez, o grande problema aqui é que temos uma potência imperialista que é agora dirigida por um regime de extrema-direita, não apenas em termos da sua ideologia, invocando Ivan Ilyin e outros pensadores fascistas, mas em termos da sua práxis, o que já fez não só na Ucrânia mas em muitos outros lugares do espaço pós-soviético, o qual considera, como por exemplo os EUA fazem em relação à região latino-americana, que é o seu quintal e que tem o direito de fazer o que quiser. No caso da Rússia, faz o mesmo com os países vizinhos .
Amy Goodman: Tem sido ferozmente crítico do papel que os oligarcas russos têm desempenhado, desde 2014 com a anexação da Crimeia pela Rússia. Mas também tem falado do envolvimento da elite ucraniana. Pode dizer-nos quem eles são e o seu significado hoje, e se os seus pontos de vista mudaram?
Denis Pilash: Bem, na verdade, as elites russas e ucranianas, a classe capitalista oligárquica, vieram da mesma fonte, foram o resultado desta acumulação primitiva de capital nos anos 1990, as pessoas que agarraram, de uma forma sobretudo criminosa, as riquezas dos países e que de facto devastaram os seus próprios cidadãos para se tornarem parte da classe capitalista global, da classe dirigente global. Penso que a ligeira diferença é, obviamente, que na Rússia a maior presença destas pessoas siloviki, esta gente dos serviços de segurança e também de mais camadas burocráticas, é mais forte, mas continua a preservar os interesses do grande capital russo.
E, no caso da Ucrânia, há uma série destes oligarcas concorrentes que tentaram não só controlar a economia mas também influenciar e controlar as decisões políticas no país, e que continuam a agir da mesma forma e a demonstraram o seu desprezo para com os seus próprios cidadãos, não só por muitos deles terem fugido – ainda antes da invasão, tinham acabado de sair da Ucrânia – mas continuam a pilhar o país, e tentam guardar em paraísos fiscais, à semelhança dos seus congéneres russos, o que foi roubado ao seu povo. E é por isso que, quando falamos, por exemplo, da apreensão dos bens dos oligarcas, sejam eles russos ou ucranianos, precisamos também de abordar a questão deste capitalismo offshore dos paraísos fiscais, onde a maioria destas elites oligárquicas costumava utilizá-los para impedir não só o pagamento de impostos, mas também para impedir que se veja como estavam a explorar os países.
Nermeen Shaikh: Acha que esta classe oligárquica na Ucrânia ou na Rússia está a beneficiar desta guerra? E quem são os beneficiários desta guerra?
Denis Pilash: Bem, na verdade, esta guerra tornou-se tão irracional que parece que as vantagens que podem ser ganhas por alguns nesta elite, não valem nada em comparação com a destruição que é provocada. Penso que transcendeu realmente qualquer lógica ou motivação racional. Mas em qualquer situação de guerra, ou outra situação dura, é como a doutrina do choque. Sim, a classe dominante agarra esta oportunidade de restringir o mais possível os direitos e liberdades das massas, e também de tornar o seu poder mais forte. Obviamente, esse foi o caso da Rússia. A verticalidade do poder tornou-se ainda mais centralizada e autocrática. E estas pessoas estão no poder há 20 anos – como Putin e os seus próximos – sem serem fiscalizados, não têm qualquer feedback nem procedimentos democráticos vindos de baixo.
E na Ucrânia vemos também que, por exemplo, os nossos deputados neoliberais ainda hoje tentaram aprovar uma lei que tornará mais fácil despedir trabalhadores, para restringir os seus direitos laborais. Assim, as mesmas pessoas que são agora essenciais para a defesa da Ucrânia viram os seus direitos atacados e estão a ser atacados pelas elites, que utilizam a situação da guerra para reduzir o espaço dos direitos dos trabalhadores e dos sindicatos. Julgo que isto acontece em quase todas as guerras que hoje assistimos. Esta não é uma exceção.
Nermeen Shaikh: Para concluir, qual seria na sua opinião um desfecho possível desta guerra? Que tipos de concessões teria a Ucrânia de fazer? Serão estas prováveis ou desejáveis? Como irá isto terminar?
Denis Pilash: É difícil de prever. E, na verdade, outro argumento a favor de enviar armamento para a Ucrânia é fazer esta analogia com as pessoas que estão envolvidas na organização sindical. Eles sabem que para negociar com o chefe, que é mais forte do que você, também precisa de ter algum poder do seu lado. E parece agora que a Rússia ainda está a pressionar para ter a oportunidade de se apoderar de um pedaço maior da Ucrânia, e provavelmente de agarrar uma parte maior da Ucrânia oriental. E é por isso que neste momento não está realmente disposta a ter uma negociação clara e igualitária com o lado ucraniano. E é por isso que precisamos tão desesperadamente de ter a Rússia à mesa, para nos sentarmos e realmente negociarmos um verdadeiro cessar-fogo, e não o que foi feito anteriormente, quando mesmo a abertura de corredores humanitários geralmente significava que eles estavam em perigo devido aos bombardeamentos russos.
Mas também vimos que os militares russos têm sido bastante ineficientes em muitos aspetos, e as suas primeiras expetativas de que teriam um blitzkrieg muito suave falharam. Eles falharam. E agora querem continuar a apresentar algum tipo de vitória à sua população e também para efeito de propaganda.
Mas parece que, na realidade, há muitos resultados possíveis. E alguns deles são realmente terríveis. Para haver suficiente solidariedade internacional, isso significa também ampliar o raio de ação sobre aquilo que tem de ser feito para ajudar a Ucrânia. Não se trata apenas de ajuda humanitária ou militar ou de ajudar os refugiados. É também a questão da anulação da dívida externa ucraniana. É a questão da preservação de um quadro para a reconstrução, a recuperação do país de uma forma socialmente mais justa e inclusiva, conclusiva. Significa também perspetivar uma alternativa ecossocialista ao capitalismo neoliberal existente, que excluirá impérios autocráticos de combustíveis fósseis como a Rússia moderna ou a Arábia Saudita moderna, que está a travar uma guerra igualmente criminosa no Iémen. E também para democratizar realmente a ordem internacional, não para recorrer a este jogo de grandes e imponentes potências que veem o mundo como apenas um recreio para uma redistribuição das esferas de influência, mas para realmente dar voz e dar poder aos países mais pequenos e aos seus povos para conseguirem travar esta dominação das grandes potências imperialistas, como os EUA, a Rússia, a China, e pode continuar a lista… Precisamos de uma visão mais complexa para o futuro a fim de não só parar esta guerra, mas também de evitar mais guerras.