Roberto Ponciano Milton Alves
Entre previsões ufanistas de uma vitória rápida que não veio e não virá, ou de um mundo “multilateral” e o fim da hegemonia do dólar, que é apenas desejo e não realidade, pela primeira vez na história vimos marxistas defenderem uma guerra de invasão e anexação.
Após mais de dois meses do início da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, nenhuma das previsões de um rápido e fulminante desfecho – acompanhada pela implosão do regime de Zelensky – se confirmaram. O velho esquema mental que norteia o “pensamento campista”, de setores da esquerda brasileira, mais uma vez bateu de frente com o muro da realidade. Não é necessário ter mais de três neurónios para prever que nenhuma guerra de invasão termine simplesmente com a vitória do país invasor. Isto não aconteceu em nenhum país do mundo, a não ser com a ocupação perpétua do território, o que sempre traz um preço bem alto em vidas e gastos militares (Iraque, Afeganistão, Vietname, Palestina), ou com a aniquilação completa da população nativa, como foi o caso da colonização das América, na qual os povos vencidos sofreram um genocídio que varreu quase a totalidade de suas populações em muitas partes de nossos territórios.
O velho pensamento campista é um péssimo conselheiro em geopolítica internacional na atualidade. Transformou a Rússia de Putin na extinta União Soviética, a qual, pesem todas as possíveis críticas a ela, jogava um papel de estrutura de apoio revolucionário militar e político a todas as revoluções do mundo. Putin não é Lenine nem Estaline, os seus aliados na Europa são políticos e movimentos nacionalistas de extrema-direita, e um processo de invasão militar não é um processo de revolução socialista. Nem mesmo a história das fracassadas intervenções da URSS na Hungria em 1956, na Checoslováquia em 1968, ou no Afeganistão, parece servir de exemplo histórico das análises bizarras que setores da esquerda fizeram de tais acontecimentos e que hoje são ridicularizadas. Sim, o melhor governo do Afeganistão foi o governo pró-Moscovo instalado com a ajuda dos tanques russos. Mas, de qualquer maneira, era um governo que dependia de um exército invasor e retroalimentou um movimento ultra-reacionário feudal, financiado pelos Estados Unidos e pela Arábia Saudita. Não, os russos não são os culpados pela criação e desenvolvimento dos talibãs, mas sim, não há como explicar a popularidade e o crescimento dos mujahedins se não entendermos a lógica de resistência local contra qualquer exército invasor.
As revoluções não se exportam. Sempre terão de ser feitas pelas populações locais, seja na URSS, na China, em Cuba, Nicarágua, Vietname, a revolução é um processo de maturação lenta das forças sociais via à emancipação. A guerra revolucionária externa é um projeto fracassado desde a tentativa do Exército Vermelho de “libertar a Polónia” logo após a Revolução Russa. Foi uma grande derrota e um grande fracasso, o povo polaco, subjugado por mais de um século pelo Império Russo, desconfiava das intenções do vizinho mais poderoso, mesmo que em frangalhos após a Primeira Guerra Mundial.
A história da Ucrânia tem muito que ver com isto. O país não é uma “invenção de Lenine”, como diz o ultranacionalista Putin. Sim, defendemos a auto-determinação dos povos, a não intervenção na Rússia, se Lula for eleito terá que dialogar com Putin. O presidente russo, é claro, não está no campo socialista. O “velho campismo”, na sua versão mais binária, rebaixou o movimento emancipatório dos povos a um jogo de war, no qual populações inteiras não contam. Para dar veracidade à narrativa de “libertação do povo ucraniano” de grupos nazis, juntaram-se factos reais, mas pontuais, como a invasão e o assassinato dos sindicalistas pelo Batalhão de Azov, para transformar toda a Ucrânia num país de 44 milhões de fascistas que tem que ser subjugado pela Rússia.
Todas as lições de Lenine sobre o princípio da auto-determinação dos povos são esquecidos ou subtraídos, por pretensos leninistas, mesmo que todas as pretensões ufanistas sobre a guerra tenham sido jogadas por terra, vejamos quais foram as “previsões” que não se cumpriram dos nossos “génios da geopolítica”:
- Vitória rápida e avassaladora da Rússia. Todo dia algum génio da geopolítica tupiniquim anuncia a iminente vitória avassaladora do exército russo. Depois de um início de campanha triunfante na fronteira, em que encontraram apoio maciço da população predominantemente russa das repúblicas fronteiriças, o “Exército Vermelho” parece atolado num nó estratégico. Ao mesmo tempo que Moscovo anuncia que “não pretende tomar Kiev”, bombardeia e tenta entrar na capital. O problema é que a vitória sobre a Ucrânia não será possível sem uma “guerra total”. Uma guerra total significa bombardeamento ostensivo de cidades e aumento exponencial do número de mortes, o que colocaria a opinião pública contra os russos. Sem isto, o Exército Vermelho encontra-se basicamente sem condições de vencer a guerra, já que a Ucrânia, mesmo sendo inferior em termos militares, tem condições de se defender continuadamente nos territórios não russos, com suprimento continuado de armas e equipamentos vindos da Nato. Por sua vez, o número de baixas russas continua a crescer e a Rússia começa a sofrer atentados no seu próprio território e nos territórios ocupados, o que era mais que previsível no início da guerra. Quanto mais a guerra perdurar melhor será para a Ucrânia, que não se encontra isolada ou desprovida de ajuda, e pior será para a Rússia.
- “Nova Ordem Mundial Multipolar”. Como militante internacionalista eu jamais imaginei que em algum dia veria companheiros, que se reivindicam marxistas, justificando uma disputa inter-imperialista como nova ordem mundial multipolar. Nem é novidade a disputa entre uma potência hegemónica dominante (Estados Unidos) e novas ou antigas potências que disputam espaço no mercado e na hegemonia global. Aliás, esta dinâmica gerou a primeira e a segunda guerras mundiais e os marxistas sempre trataram isto como disputas inter-imperialistas. Surpreende-me agora ver pessoas a louvar de forma chauvinista a potência militar russa, defendendo até uma “guerra total”, como sendo ela capaz de criar um “mundo novo multipolar”. As lições de Marx ou Lenine sobre revolução nunca foram disputas entre Estados burgueses (sim, senhores, a Rússia de hoje é um pais capitalista burguês buscando seu espaço no saque mundial), mas guerra de trabalhadores contra os seus senhores. Todas as previsões de um “novo mundo multipolar” que emerge do conflito tem muito mais que ver com desejo do que com realidade. O conflito nem arranhou a hegemonia do dólar, e se a Europa é dependente das comoddities russas, toda a estrutura económica russa, baseadas nas mesmas comoddities, depende deste mesmo comércio. Se o boicote russo pode causar danos à Europa, o estrangulamento financeiro causado à própria Rússia pelo boicote, não torna este possível por um largo espaço de tempo.
- A guerra não abalou a hegemonia norte-americana ou da Nato. Retroalimentou o discurso armamentista, num momento em que avançava na Europa toda uma oposição anti-Nato. Se antes da guerra contra a Ucrânia o discurso anti-Nato se tornava hegemónico, hoje o conflito retroalimentou no imaginário europeu ocidental a aceitação da aliança e o incentivo aos gastos militares no orçamentos de todos os países. Biden tem muito a agradecer a Putin, qualquer aumento do gasto militar no Congresso dos EUA será previamente justificado, qualquer aumento no envio de tropas às regiões limítrofes da Rússia, qualquer intervenção ou invasão norte-americana aos países do “eixo do mal” estará previamente justificada no imaginário propagandístico da guerra. A invasão russa presta um belo serviço aos senhores e comerciantes da guerra, dá um belo incentivo ao incremento bélico e não tem nenhum resultado palpável de uma possível Nova Ordem Mundial multipolar.
- Fim da hegemonia política militar norte-americana e surgimento de uma nova ordem multipolar comandada pela China e pela URSS. O mais estranho desta previsão é que ela não leva em conta a estreita simbiose de produção e comércio dentre China e Estados Unidos. A China depende enormemente de comércio e investimento norte-americano e boa parte das suas finanças estão convertidas em dólares como bónus do próprio tesouro norte-americano. É óbvio que os chineses têm os seus próprios objetivos de crescimento e comércio internacionais, mas, se na política há uma rivalidade não aberta e deflagrada contra os EUA, isto não se dá na economia. Em que pesem medidas unilaterais americanas contra alguns produtos tecnológicos chineses, as medidas são enormemente ineficazes pelo pesado investimento das próprias empresas americanas dentro da China. É uma forma de parceria conflitiva e todos aqueles que fazem previsões de uma nova hegemonia chinesa passam ao largo desta realidade. Fundamental é lembrar também que a política exterior da China é completamente diferente da extinta URSS. Podem-se fazer todas as críticas à URSS, menos a que não era solidária com as revoluções pelo mundo. A União Soviética incentivou e ajudou técnica e militarmente a todas as revoluções e guerra de libertação dos povos no Terceiro Mundo. Já a política exterior da China, com raras e honrosas exceções, como Camboja e Coreia, pauta-se por um pragmatismo comercial no qual pouco importa que tipo de regime ou governo com qual a China negoceia. Não é possível uma “nova ordem multilateral progressista” cujos únicos pressupostos de facto são um comércio internacional desigual, no qual as importações de produtos manufaturados dos EUA são substituídos por produtos manufaturados chineses. Isto tem pouco ou nada a ver com emancipação e libertação dos povos. Defendemos o multilateralismo, mas desconfiamos que o multilateralismo que almejamos está longe de ser meramente comercial.
Enfim, entre previsões ufanistas de uma vitória rápida que não veio e não virá, ou de um mundo “multilateral” e o fim da hegemonia do dólar, que é apenas desejo e não realidade, pela primeira vez na história vimos marxistas defenderem uma guerra de invasão e anexação. Se a Rússia se tivesse limitado a apoiar, até militarmente, a guerra de independência das repúblicas pró-Rússia, fornecendo armas e equipamentos a povos agredidos, estaríamos a operar no estrito limite da auto-determinação dos povos. Não foi o que aconteceu, e, por mais que alguns façam um esforço hercúleo em mitificar uma guerra de invasão e anexação evocando o passado do Exército Vermelho, ou uma ou outra bandeira da URSS, é bom lembrarmos que os que fazem a guerra hoje são aqueles que destruíram a herança socialista e se apossaram dos meios de produção. Há uma ilusão sem futuro e um beco sem saída histórico para aqueles que continuam a defender a guerra de agressão de Putin.