Oleksandr Kolesnichenko.
A 13 de dezembro, o parlamento ucraniano apressou o avanço de emendas radicais às leis de planeamento urbano. A maior parte dos promotores imobiliários apoiam-nas enquanto jornalistas, arquitetos e outras figuras públicas lançam o alarme.
Ao início, Dmytro Perov não acreditou nas histórias da sua avó acerca de cavernas antigas por debaixo do pátio do prédio do edifício do século XIX onde a sua família tinha vivido em Kiev. “Pensei que alguém tinha inventado aquilo”, disse o advogado e ativista ao openDemocracy. Mas os planos para construir um novo complexo residencial no local estimularam-no para investigar a história da sua avó.
Ele tinha boas razões para estar preocupado. A abordagem das autoridades ucranianas de darem “via verde” aos planos dos promotores imobiliários – o que não está isento de suspeitas de corrupção – continuou desde que a Rússia invadiu o país. Na verdade, os ativistas dizem que a demoli ção de locais históricos de Kiev acelerou mesmo durante a guerra.
A 13 de dezembro, o parlamento ucraniano apressou o avanço de emendas radicais às leis de planeamento. A maior parte dos promotores imobiliários apoiam-nas, enquanto jornalistas, arquitetos e outras figuras públicas lançaram o alarme.
Estes novos regulamentos, que foram desenhados antes da guerra, vão dar poderes sem precedentes à indústria da construção da Ucrânia, dizem os críticos.
Em novembro, Perov – que trabalha para um grupo dedicado à herança da cidade e que se opõe com frequência à demolição de edifícios antigos em tribunal – e um grupo de amigos encontraram um complexo de quatro cavernas na casa abandonada e na sua maior parte em ruínas onde a sua avó tinha vivido. Este situa-se em Voznesenskyi Uzviz, uma rua que liga dois bairros históricos, Podil e Verkhne Misto.
Os arqueólogos dat aram provisoriamente as cavernas da era do Kyivan Rus – um Estado que existiu desde o século IX a meados do século XII – ou mesmo do período pré-cristão da Ucrânia.
A descoberta das cavernas e a pressão pública subsequente forçou o conselho municipal de Kiev a adiar a sua decisão de arrendar o terreno a promotores privados.
“Talvez tenha sido um sinal de Deus”, disse Perov. “Encontrámos as cavernas mesmo quando o promotor imobiliário estava prestes a conseguir a licença de construção”.
Um boom da construção
Esta rara, e talvez temporária, vitória no braço de ferro entre ativistas e promotores imobiliários sobre os locais históricos de Kiev destaca-se num contraste brutal face à norma dos anos recentes. Ao longo da década passada, a construção de casas nas grandes cidades ucranianas tornou-se um dos setores mais lucrativos da economia do país. Como resultado disso, os promotores imobiliários ganharam influência sobre as autoridades locais e o parlamento ucraniano, conseguindo fazer um bem sucedido lóbi para a atribuição de terrenos de forma a manter os seus programas de construção intensiva.
Como resposta a isto, grupos de ativistas por toda a Ucrânia, mas particularmente na capital, têm lutado para proteger os edifícios do século XIX e da era soviética sob ameaça de demolição. Espaços verdes, parque e até o acesso público às praias de Kiev nas margens do rio Dniepre estão também ameaçados.
A preocupação pública acerca do poder incontrolado das empresas de construção ucranianas em tempo de guerra até se passou a traduzir no humor popular. De acordo com uma anedota: “ninguém na Ucrânia acredita tanto nas forças armadas como os promotores imobiliários”.
A ameaça à casa da avó de Perov – agora um local histórico – é uma história típica das muitas lacunas legais utilizadas pelos proprietários para começar a construir sem terem um pacote completo de licenças ao abrigo das leis de planeamento atuais, dizem os ativistas.
As autoridades comunistas tinham despejado a família de Perov há cerca de 40 anos, em 1979, do seu apartamento no prédio de três andar na rua Voznesenskyi Uzviz porque o terreno tinha sido destinado a novas construções, mas as obras nunca chegaram a realizar-se. Nos anos seguintes, o edifício de 1898 começou a cair em ruínas. Hoje, apenas a fachada de mantém.
Em 2019, uma empresa do setor imobiliário de Kiev, a Capital Real Estate, pediu às autoridades da cidade para arrendar o terreno onde ficam as ruínas do edifício para construir um novo complexo residencial de vários andares.
A empresa realçava que era proprietária do prédio em ruínas. Mas no registo de propriedade oficial de Kiev não constava nenhuma informação acerca da propriedade deste que era uma ruína ao tempo em que as autoridades ucranianas passaram a tomar conta dos registos da União Soviética. E o departamento de propriedades da administração municipal da cidade de Kiev disse que nunca tinha emitido nenhum certificadi de propriedade relativo a este endereço.
Partindo destas bases, Perov alega que a empresa recebeu documentos de propriedade de forma ilegal. O caso está atualmente sob investigação da polícia local.
A Capital Real Estate não respondeu ao pedido de comentário do openDemocracy. Contudo, de acordo com Perov, a alegação da Capital Real Estate é de que a propriedade foi registada em 2017 e assim sendo o caso criminal é ilegal porque o limite de três anos para apresentar uma queixa teria expirado.
Fora com o que seja velho
Hoje em dia, os cidadãos ucranianos podem contestar construções potencialmente ilegais em tribunal. Os ativistas também têm feito protestos nos locais de construção, mas estes foram proibidos com a aplicação da lei marcial em vigor. Mas num espaço de seis meses, os ucranianos podem perder também o seu direito de avançar com ações judiciais quando a nova lei de reforma do planeamento urbano entrar em vigor.
Esta lei restringe significativamente os canais através dos quais é possível garantir o estatuto de proteção a um edifício histórico ou devolver propriedade aos municípios. Sob a nova legislação, tais ações passam a ser interpretadas como uma infração contra os direitos dos proprietários.
Perov teme que todos os casos presentemente em tribunal sobre conflitos de propriedade sejam anulados porque os promotores imobiliários vão usar a nova lei para acabar com eles. Também está preocupado com o impacto a longo prazo desta lei. Disse ao openDemocracy que dos 3.000 edifícios históricos da capital ucraniana, apenas um terço têm estatuto de proteção. “Isto significa que 2.000 edifícios históricos, a maior parte dos quais de propriedade privada, estão sob ameaça de destruição. [Com a nova lei] qualquer um poderá comprar uma pequena casa, demoli-la e transformá-la num arranha-céus”, diz.
Perov nota que provavelmente mais edifícios históricos foram demolidos este ano em Kiev do que em 2021. “Antes da guerra, os edifícios históricos eram destruídos para dar lugar a empreendimentos específicos. Agora são destruídos como medida proativa”, explica. “Será mais fácil trabalhar com parcelas de terreno depois da guerra. [A terra] é um bem mais líquido.”
Arquitetos sob ataque
Os ativistas ucranianos dedicados a proteger edifícios históricos não são as únicas pessoas que desagradam aos promotores imobiliários do país, apostados em restaurar os lucros que caíram dramaticamente como resultado do colapso económico que a invasão desencadeou.
Em novembro, os Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU) fizeram uma rusga na sede do Sindicato Nacional dos Arquitetos da Ucrânia, assim como nas empresas e casas dos dirigentes sindicais. O SBU disse que a rusga era parte de uma investigação sobre uma alegada interferência no sistema nacional de planeamento digital e que o sindicato, alegadamente, tinha emitido certificações profissionais a pessoas não qualificadas. Uma das dirigentes do sindicato, Anna Kyrii, acredita que a atenção das autoridades surgiu de uma “vingança” de políticos ucranianos contra os arquitetos porque estes criticaram a nova reforma do planeamento urbano.
Kyrii afirma que a nova lei aprovada a 13 de dezembro foi adotada numa tentativa de “redistribuir as alavancas de influência” na indústria de construção e planeamento da Ucrânia.
Com os atuais regulamentos, se o arquiteto responsável por um empreendimento imobiliário discordar de um promotor por causa de alterações significativas – tais como a utilização de materiais mais baratos ou esforços para contornar os códigos de construção – então pode comunicar o litígio a uma inspeção estatal, que pode conduzir uma investigação. A nova lei irá mudar o procedimento para resolver este tipo de disputas: se um arquiteto recusar fazer as alterações que o empreiteiro quer, ao abrigo da nova lei poderá recorrer a uma nova câmara de planeamento urbano ligada ao recém-criado Ministério das Comunidades, Territórios e Desenvolvimento de Infraestruturas da Ucrânia. Se não receber autorização ou recusa dentro de 30 dias, as suas alterações serão aprovadas por norma.
“De facto, não há nada sobre planeamento urbano nesta lei”, diz Kyrii.
Na verdade, os críticos da nova lei argumentam que esta apenas fortalece o papel do Ministério das Comunidades, Territórios e Desenvolvimento de Infraestruturas. Este passa a ter toda a autoridade para lançar licitações de construção e definir condições para essas licitações, decidir quem terá acesso ao mercado, certificar arquitetos e resolver disputas.
Mais ainda, com a entrada em vigor da nova lei, inspetores legais privados vão substituir as autoridades de planeamento estatal na emissão de licenças de planeamento e na certificação de que um edifício está pronto para uso. Teme-se que isto leve os empreiteiros a registar as suas próprias empresas deste tipo – por exemplo através de amigos ou familiares.
“O pior nesta situação é que o Estado está a retirar qualquer forma de responsabilidade sobre o setor imobiliário, diz Kyrii. “Promotores privados, avaliações privadas aos edifícios e supervisão privada – sem nenhuma forma de supervisão sobre os promotores feita pelo Estado”.
A maior parte da indústria da construção apoia a nova lei. Serhiy Pylypenko, CEO do maior produtor de cimento da região de Kiev, o grupo Kovalska, acredita que a nova lei completará a há muito esperada reforma da forma como as agências estatais monitorizam e regulam o planeamento urbano e a construção – e eliminar a corrupção no setor.
Assinala que as novas disposições devolverão o poder de decisão aos níveis mais baixos do governo, introduzindo responsabilidade criminal pela construção ilegal ou violação das condições do uso da terra.
“[A lei] permitirá acelerar todos os processos que têm impedido artificialmente o desenvolvimento da indústria da construção e tiveram um impacto negativo na economia”, diz Pylypenko. Ele descreve as críticas feitas à lei por parte dos arquitetos ucranianos e organizações públicas como “rebuscadas” e “injustas”.
Legislação apressada
Como outras leis potencialmente controversas aprovadas durante o tempo de guerra, a nova lei sobre planeamento urbano foi desenvolvida antes da invasão russa – e depois apressada no Parlamento aparentemente com pouco escrutínio.
Os promotores imobiliários contribuíram para a sua escrita através do seu lóbi, a Confederação dos Construtores da Ucrânia, organizando encontros com deputados ao nível individual e participando em encontros especiais no Parlamento.
Antes da guerra, a legislação tinha apoio significativo no Parlamento mas o número de deputados disponíveis para a apoiar desceu para apenas 228 (a lei precisa de 226 votos – metade da câmara – para passar).
Originalmente uma lei com 300 páginas de emendas a quatro diferentes leis já existentes e uma tabela comparativa de mudanças que chega às 2.000 páginas, o projeto final não foi publicado pela página de internet do parlamento ucraniano antes do voto final – nem depois dele. Os procedimentos habituais, como a discussão preliminar ou emendas do plenário, não foram seguidos. Até ao dia 28 de dezembro, a lei não tinha ainda sido publicada.
O openDemocracy tentou contactar a principal autora, Olena Shulyak, para perceber porque é que a lei tinha passado tão rapidamente mas não recebeu uma resposta. Num artigo disponível na sua conta de Facebook, Shulyak, que dirige o partido no poder, o Servo do Povo, alega que a lei digitalizará e simplificará os procedimentos de construção necessários para a reconstrução pós-guerra. “Não temos o direito moral de deixar o planeamento urbano no estado em que tem estado. Particularmente durante a reconstrução, ao usar fundos públicos e dos parceiros internacionais”, escreveu.
Mas Anna Kyrii, do sindicato dos arquitetos, está convencida que a aprovação da lei foi apressada porque o partido no poder podia ainda apoiar-se nos votos dos deputados dos partidos pró-Rússia que foram banidos. Os registos das votações mostram que a lei não podia ter sido aprovada sem o voto destes deputados.
No dia seguinte, os deputados do partido do governo começaram a recolher assinaturas em apoio à revogação de mandatos dos deputados que pertencem a partidos pró-Rússia – uma medida que tem vindo a ser reivindicada desde a invasão de fevereiro.
Mudanças de opinião
Entretanto, alguns dos colegas de partido de Shulyak que os jornalistas tinham anteriormente ligado a interesses de promotores imobiliários mudaram de posição na véspera da votação, apelando publicamente aos deputados para se oporem à lei.
Anna Bondar, ex-funcionária da construção que também é deputada do partido do governo, retirou a sua assinatura do projeto de lei. Defendeu que levaria as empresas a controlarem a emissão da maior parte das licenças de construção e que os governos locais teriam os seus poderes de planificação reduzidos.
A legislação passou agora para as mãos do presidente Volodymyr Zelenski para a promulgar ou vetar, como mais de 42.000 pessoas pediram numa petição online.
Mas o ministro das Comunidades, Territórios e Desenvolvimento de Infraestruturas, Oleksandr Kubrakov, apoia a lei e acredita-se que tem uma boa relação com o presidente: os meios de comunicação social apresentam-no como um possível candidato a ser um futuro primeiro-ministro. A sociedade ucraniana há muito que se indigna com a ação dos promotores imobiliários, particularmente quando quebram as leis, constroem nas zonas verdes das cidades e causam disrupções à vida urbana. Tudo isto provocava discussões públicas antes da invasão russa. O deputado Dmytro Hurin, outro dissidente do Servo do Povo que os jornalistas antes ligavam aos interesses dos promotores imobiliários, argumentou que a nova lei tem pouco a ver com a reconstrução pós-guerra. “Definitivamente, não é assim que os vencedores devem reconstruir”, disse.