Alexey Sakhnin
Neste texto, o militante de esquerda russo Alexei Sakhnin denuncia a “agressão armada” contra a Ucrânia e defende “uma democratização imediata, exaustiva e intransigente dentro da própria Rússia”.
Enquanto as tropas russas fazem reinar o terror sobre os ucranianos, os ministros de Vladimir Putin afirmam querer uma paz negociada. Mas como a vitória está fora de alcance, a guerra do Kremlin está a voltar-se para a frente interna, para abafar as vozes dissidentes que se opõem à guerra na Rússia.
Alexey Sakhnin, nasceu no início dos anos 1980, foi um dos quadros da Frente de Esquerda: importante coligação ligada ao Partido Comunista Russo, fundada em 2008 e abertamente contrária ao poder de Vladimir Putin. O objetivo da Frente é construir uma “alternativa progressista à barbárie capitalista”, ou seja, “construir uma sociedade socialista justa”. Em 2012, Sakhnin obteve asilo político na Suécia; sete anos depois, ele estava de volta ao seu país natal.
Desde a invasão da Ucrânia, ele vive sob a ameaça permanente de prisão: isto porque o ativista está a falar em voz alta e clara contra a “agressão armada de uma escala sem precedentes”. Acaba de sair da Frente de Esquerda, após a decisão desta última de aprovar maioritariamente a guerra. “Nós realmente precisamos de uma frente dos povos pela paz, a igualdade, a liberdade e o socialismo. Infelizmente, para construir este mundo e esta frente, será preciso partir do zero”, disse Alexey Sakhnin no seu comunicado de saída.
Prefácio de contretemps.eu
Mesmo entre os funcionários mais confiáveis de Vladimir Putin, a decisão de iniciar a guerra não foi fácil. Toda a Rússia viu como a voz do chefe do serviço de segurança externa, Sergey Naryshkin, falhou quando o presidente lhe pediu para responder diretamente aos planos para o reconhecimento das "repúblicas populares" de Donetsk e Luhansk (Donetskaya Narodnaya Respublika, DPR; Luganskaya Narodnaya Respublika, LPR). Mas por mais assustador que seja para as elites russas lançar-se nessa aventura, sair dela poderá ser ainda mais complexo.
No final da terceira semana de guerra, começaram a circular rumores na Rússia sobre a possibilidade de um acordo de paz. Estas afirmações vieram de participantes nas negociações oficiais e de funcionários de alto nível. “Claro que preferimos que tudo isso aconteça muito mais depressa; essa é a aspiração sincera do lado russo. Queremos alcançar a paz o mais rapidamente possível”, declarou o chefe dos negociadores russos e ex-ministro da Cultura, Vladimir Medinsky. Até o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que tinha "uma esperança particular de chegar a um compromisso".
Se a palavra "compromisso" começou a aparecer nos discursos dos burocratas e diplomatas russos, ela não caiu do céu. A guerra desenrolou-se de uma forma que desafiou as expectativas dos estrategas russos. Moscovo percebeu que já não podia contar com uma "pequena guerra vitoriosa" com uma capitulação rápida do inimigo. A questão é a seguinte: qual é a importância das concessões que o Kremlin terá que fazer agora? O outro lado também entendeu isso.
Ihor Zhovkva, vice-chefe do gabinete do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, disse a jornalistas que, embora Moscovo tenha usado inicialmente uma linguagem de ultimato, exortando "a Ucrânia a desistir, a depor as armas e a fazer com que o presidente assine uma capitulação - a Rússia agora tem um tom diferente". O conselheiro presidencial e um dos principais negociadores, Oleksiy Arestovych, anunciou que o lado ucraniano tomava a iniciativa nas negociações:
"Nós não estamos prontos para ceder em nada. Pelo contrário, estabelecemos condições bastante rigorosas. Entendemos claramente que se recebermos menos do que tínhamos antes da guerra, é uma derrota para nós. Propusemos certas condições, que ainda não podemos revelar... Posso dizer que estas condições agradarão ao povo ucraniano que luta pela liberdade. »
Mas o mais surpreendente é talvez que estas palavras – que provocam a ansiedade nos dirigentes russos – foram publicadas hoje nos média russos, inteiramente sob o controle do departamento de censura. Isso deu origem a rumores no "campo patriótico", segundo os quais algumas pessoas no poder passaram para o que consideram uma "posição de rendição". Por exemplo, o nacionalista Igor Strelkov, que ocupou a cidade de Sloviansk no Donbass em 2014 – o fator imediato da guerra que se seguiu – disse isso. Entretanto, novos sinais continuam a chegar do topo do governo russo, indicando que Moscovo está pronta a fazer pesadas concessões em relação aos ultimatos dos primeiros dias da guerra. Primeiro, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Maria Zakharova, surpreendeu todos ao anunciar que a Rússia não prevê derrubar o atual governo ucraniano (anteriormente, Putin tinha declarado diretamente o contrário). Em seguida, o chefe do departamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia para a Comunidade de Estados Independentes (CEI) pós-soviética, Alexey Polishchuk, emitiu o pensamento ainda mais blasfemo de que a questão do retorno da República Popular de Donetsk (RPD) e da República Popular de Lugansk (RPL) à Ucrânia permanece aberta e deve ser "decidida pelos cidadãos das repúblicas". O site RT (Russia Today) publicou essas palavras.
As posições de negociação de Moscovo parecem piores agora do que antes da guerra. O que se entende essencialmente aqui é a derrota, mesmo que ela seja suavizada por concessões mútuas que serão difíceis para a Ucrânia. Para o "campo patriótico" radical, isso significa uma catástrofe. Aqueles que apoiam ativamente a guerra falam já de um "novo Khasavyurt". Este termo refere-se ao acordo de paz assinado com os separatistas chechenos em 1996, que eles consideram "vergonhoso" para a Rússia porque aceitou retirar as suas tropas da Chechénia e concedeu aos separatistas o reconhecimento (ainda que temporário). O governo de Boris Ieltsin então aceitou a derrota na primeira guerra da Chechénia. Estes autoproclamados "patriotas" também falam de um processo "Minsk-3" análogo às fracassadas negociações de paz de 2014 e 2015.
Salvo uma conquista pura e simples da Ucrânia, transformando-a numa parte do novo "Império Russo", é claro que qualquer compromisso de paz na frente ucraniana incluirá graves consequências para o governo russo.
Pelo menos 200.000 soldados retornarão da frente traumatizados pela guerra. Eles terão observado tudo o que os media do Kremlin agora silenciam: a revolta patriótica do povo ucraniano, o ódio ao ocupante, as destruições massivas e as baixas civis, as graves perdas sofridas pelo exército russo que os dirigentes passaram em silêncio na frente interna, e o sentimento geral de uma guerra perdida e injusta.
Os soldados serão seguidos por vários políticos e ativistas "pró-russos" na própria Ucrânia, que apostaram na Federação Russa e terão que fugir. Eles acrescentarão um sabor de traição à retirada. Mas os poucos colaboradores ucranianos juntar-se-ão aos bastante numerosos patriotas e nacionalistas russos, para quem a recusa da "guerra até ao fim vitoriosa" significa uma traição nacional.
Mas estas são questões triviais face ao resultado global: em troca de ganhos diplomáticos vagos – o estatuto hipotético de neutralidade da Ucrânia e, talvez, o reconhecimento da Crimeia como russa – o país receberá uma economia em colapso, uma moeda desvalorizada, sanções, um Ocidente unido e adverso, e a dor das perdas humanas. Os efeitos de tudo isto parecem substituir os índices de popularidade anteriormente altos de Putin por um "buraco negro" - uma atração gravitacional gigante de ódio contra o presidente que arrastou o país para este desastre.
A paz a qualquer preço
No entanto, a classe dominante russa tem muitas razões para procurar a paz, mesmo que o preço a pagar seja elevado. A principal é que esse custo só aumentará com o tempo.
De acordo com as previsões mais otimistas dos especialistas governamentais, a Rússia deverá ter uma queda de 8% no PIB este ano – mesmo que a guerra termine rapidamente. O desemprego deve duplicar. A inflação atingirá uma taxa anual de 20-25%. Mas se a guerra continuar, estas avaliações podem tornar-se um sonho. Um eventual acordo com o Irão e uma recessão económica mundial podem levar à baixa dos preços do petróleo e enfraquecer a dependência da UE dos combustíveis fósseis da Rússia. A Rússia pode então esperar uma crise financeira mais generalizada – uma queda de até 30% do PIB, de acordo com algumas estimativas.
Além de uma queda potencialmente catastrófica na credibilidade das autoridades junto das pessoas comuns, há também a ameaça de um colapso rápido do regime e da sua máquina administrativa. A ação antiguerra de Marina Ovsyannikova, funcionária da televisão estatal, que apareceu numa transmissão direta pela Internet com um cartaz exigindo o fim da guerra, mostra que até a máquina de propaganda está atualmente em profunda crise. Em consequência, muitos jornalistas estão a deixar as cadeias de televisão, incluindo "estrelas" de primeiro plano. Outra figura importante que renunciou é um alto funcionário do governo – o ex-vice-primeiro-ministro e presidente da Fundação Skolkovo, Arkady Dvorkovich. Mas o perigo maior é mais insidioso.
Na sua crónica no “Guardian”, o economista francês Thomas Piketty abordou a questão mais sensível para a classe dominante russa. Para que a Rússia termine a sua "operação militar especial" na Ucrânia, bastaria que o Ocidente congelasse ou confiscasse os bens de 20.000 milionários russos, cada um com mais de 10 milhões de euros em residências europeias e americanas. Putin, alguns dos seus parentes e dezenas de oligarcas e altos funcionários russos já estão em listas de sanções; no entanto, Piketty explica: “O problema é que as medidas aplicadas até agora permanecem em grande parte simbólicas. Elas dizem respeito apenas a algumas dezenas de pessoas e podem ser contornadas usando outros nomes…”
Na situação atual, a maioria dos figurões e burocratas russos sente-se segura, graças à ajuda dos intermediários financeiros que administram os seus ativos. Para livrá-los dessa possibilidade, deve ser criado um registo financeiro internacional para seguir as carteiras existentes de ativos imobiliários e financeiros das famílias que dirigem a Rússia, independentemente de como são legalmente formalizadas e de quem as administra. “Ameaçado de ruína e com a proibição de ir para o Ocidente, escreve Piketty, apostamos que esse grupo seria capaz de se fazer ouvir pelo Kremlin.”
É claro que, neste momento, os ricos ocidentais resistem a tais medidas porque os seus "interesses estão muito mais entrelaçados com os dos oligarcas russos e chineses do que às vezes se afirma". Mas a guerra que se arrasta ou escala para a destruição total das cidades ucranianas pode fazer com que os ocidentais desistam da sua fetichização do “direito sagrado à propriedade” – quando se trata de milionários russos, pelo menos.
Segundo os cálculos do economista francês, apenas cerca de 100.000 russos têm ativos de 2 milhões de euros ou mais no Ocidente. Esta é essencialmente a classe dominante da Rússia. Essas são as pessoas que administram a economia, as infraestruturas, a ordem civil, o aparelho administrativo, os media – toda a máquina governamental da Rússia de Putin. Se ele se tornar uma fonte de dor para eles em vez de um garante de privilégios, não haverá nada para substituir a sua lealdade. A oligarquia do Kremlin ficará suspensa no ar. Até o Kremlin está consciente disso. O secretário de imprensa de Putin, Dmitry Peskov, qualificou as medidas ocidentais contra os oligarcas russos de ataque ao "caráter dos direitos de propriedade". Mas, o mais importante é que os membros da elite russa também veem o perigo.
A afilhada de Putin, Ksenia Sobchak, que sempre fez parte da oposição moderada e ultraliberal ao seu padrinho, fez uma birra reveladora em 17 de março. "Biden fez um discurso no Congresso que pode ser resumido assim: 'As pessoas na Ucrânia estão a morrer, então... (rufem os tambores!) vamos tomar os iates dos oligarcas'", escreveu ela. "Sou a única a pensar que isso é um repugnante 'realismo revolucionário', onde o contrato social está acima da lei? Nós transformamo-nos em personagens de Ayn Rand”. Apesar da sua indignação com as ameaças "comunistas" de Biden, os membros da elite russa entendem com uma clareza sem precedentes que o seu verdadeiro problema é a preservação do poder de Putin.
A única maneira de as elites isoladas do país não deixarem todo o aparelho governamental desmoronar-se é acabar com a guerra o mais rápido possível – o que lhes permitiria recuperar a sua própria paz de espírito.
Putin transforma a sua guerra imperialista numa guerra civil
Diante das dúvidas crescentes – até mesmo da oposição pura e simples – internamente, o medo das autoridades é palpável. "O Ocidente coletivo tenta dividir a sociedade, especula sobre as baixas militares, as consequências socioeconómicas das sanções, tenta provocar uma resistência civil na Rússia", declarou o próprio Putin num discurso televisionado.
Ele qualificou de "quinta coluna" e de "traidores da nação" aqueles que "por causa da sua mentalidade de escravos" alinham com o Ocidente. Ele também prometeu que o povo "cuspirá nesses traidores e bastardos, como uma mosca que acidentalmente voou para a boca". Por enquanto, não se trata tanto de oposição popular, mas de membros descontentes da elite. No entanto, está claro que a frente de Putin se desloca lentamente da Ucrânia para a própria Rússia.
Qualquer que seja a situação nos campos de batalha, a importância desta "frente interna" continuará a crescer. Uma derrota mal disfarçada e uma "paz vergonhosa" levarão certamente a um aperto dos parafusos do controle ditatorial, do medo que a cólera dos patriotas de ontem expluda. Mas a continuação da guerra também fará com que o governo faça prova de uma crueldade sem precedentes e brutal para com todas as vozes dissidentes, para que a depressão e o medo de hoje não se transformem em revolta amanhã.
Isto põe em evidência uma condição essencial para alcançar alguma aparência de paz nesta parte do mundo. Enquanto os ativistas antiguerra são presos e espancados, a ameaça de mais derramamento de sangue permanece. Somente uma democratização radical, na Rússia e além dela, permitirá estabelecer uma paz duradoura e relações amistosas entre os povos do antigo espaço soviético.
Essa democratização começa com etapas evidentes: a libertação imediata de todos os presos políticos, o abandono da censura e da violência política e a abertura da arena eleitoral. Mas deve inevitavelmente ir mais longe. Porque Putin e o seu círculo restrito não são os únicos responsáveis pelo desastre de hoje. Toda a classe dominante – os seus altos funcionários, o seu sistema judicial, os seus generais, os seus políticos leais e os seus oligarcas – desempenharam o seu papel na criação deste inferno. Ela não pode continuar a liderar o país, mesmo que tenha que pagar o preço da capitulação ao Ocidente. Os biliões que extraíram da Rússia e da Ucrânia devem ser devolvidos às pessoas que sofreram com a guerra e a ditadura. São elas que vão criar o novo "contrato social" de que Ksenia Sobchak e o seu padrinho tanto temem.
Portanto, a condição essencial para a paz deve ser uma democratização imediata, exaustiva e intransigente dentro da própria Rússia. É por isto que a esquerda, assim como todas e todos aqueles que querem parar esta guerra, devem lutar.
A versão original deste texto foi publicada pela Jacobin em 22 de março, tradução francês e publicação em contretemps.eu. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net