Anatol Lieven
Por um lado, Moscovo procurou manter influência sobre a Ucrânia como um todo. Por outro, quis o “regresso” à Rússia dos territórios que considera historicamente seus. A prossecução simultânea dos dois objetivos e a divisão das suas forças fez falhar completamente o primeiro objetivo e em grande parte o segundo.
Não é surpreendente que tanto tenha sido escrito sobre a ilegalidade e a ilegitimidade dos objetivos de guerra da Rússia na Ucrânia. Afinal de contas, tentar anexar partes da Ucrânia ou derrubar o seu governo legítimo são violações flagrantes do Direito Internacional. Menos tem sido escrito, porém, sobre a razão pela qual a Rússia falhou tão clamorosamente na realização dos seus principais objetivos políticos, e não apenas militares, na Ucrânia, desde a revolução de 2014 no país.
Uma razão chave é que o governo russo almejava dois objetivos mutuamente contraditórios. Por um lado, Moscovo procurou manter a influência sobre a Ucrânia como um todo. Por outro lado, procurou o “regresso” à Rússia dos territórios que considera historicamente russos. Essa contradição foi resolvida. A partir de agora, o foco da Rússia está no território do sul e do leste.
Quanto ao resto da Ucrânia, continuará a tentar impedi-la de aderir formalmente à NATO, mas as elites russas com quem falei, aceitam agora, como o próprio Putin presumivelmente aceita, que será um inimigo da Rússia e um aliado de facto do Ocidente num futuro previsível.
As origens desta dupla política podem ser traçadas a partir de um famoso ensaio de 1990 de Alexander Solzhenitsin, cujos escritos dizem ter tido uma influência considerável em Vladimir Putin, intitulado "Rebuilding Russia". Com o colapso evidente da União Soviética, Solzhenitsin escreveu que as repúblicas do Báltico, Cáucaso e Ásia Central (menos o Cazaquistão, com a sua enorme minoria russa) deveriam simplesmente partir, uma vez que tinham culturas diferentes e nunca tinham feito parte da Rússia propriamente dita.
Esperava que a Ucrânia e a Bielorrússia, como povos eslavos orientais estreitamente ligados à Rússia, permanecessem nalguma forma de união e chamou à sua separação uma "divisão cruel". No entanto, segundo Solzhenitsin, se a maioria dos ucranianos quisesse realmente separar-se da Rússia, deveriam ser autorizados a fazê-lo, mas sem "as partes que não faziam parte da antiga Ucrânia… Novorossia ("Nova Rússia"), Crimeia, Donbass e as áreas que se estendem praticamente até ao Mar Cáspio". Estas áreas, escreveu, deveriam ser "auto-determinadas", implicando que seriam "reincorporadas" na Rússia.
Como é habitual na história moderna, a reivindicação da Rússia sobre estes territórios baseia-se numa mistura contraditória de argumentos históricos, etno-linguísticos e quase jurídicos, aos quais a democracia é acrescentada, quando útil. O caso básico é que, até ao final do século XVIII, estes territórios eram estepes vazias, despovoadas pelas incursões dos tártaros da Crimeia no sul.
Foram conquistados pelo exército imperial russo e depois colonizados por vários grupos entre os quais predominavam ucranianos étnicos, mas que também incluíam muitos russos, alemães e emigrantes sérvios, búlgaros e gregos do Império Otomano. Antes da conquista russa, não existiam cidades nesta região e às recém-fundadas foram dados novos nomes, na sua maioria dos czares russos.
A atual Dnipro era Yekaterinoslav; a atual Kropnitski era Yelisavetgrad, antes de se converter em Kirovgrad sob o dominio soviético. Mikolayiv era Nikolayev, em honra ao czar Nikolai I. Donetsk, curiosamente, chamou-se Yuzovka em honra a um galês, John Hughes, que foi o primeiro a explorar as minas de carvão da região.
Em parte devido à colonização originalmente mista, e em parte devido à migração industrial, nos séculos XIX e XX, esta área tem sido largamente russófona e, até à revolução ucraniana de 2014, votou consistentemente em partidos que favoreciam boas relações com a Rússia. A região alberga oito das dez maiores cidades da Ucrânia e toda a costa ucraniana do Mar Negro. A sua perda deixaria a Ucrânia como um estado em ruínas.
De acordo com antigos funcionários russos com quem falei, o Kremlin foi apanhado de surpresa pela queda do Presidente Yanukovych, em Fevereiro de 2014, e, por isso, foi rápido a organizar uma resposta. Não havia um plano militar para uma invasão da Ucrânia, mesmo que, na altura, a extrema fraqueza do exército ucraniano e a falta de um governo ucraniano significasse que poderia ter sido levada a cabo com pouca resistência inicial.
Parece que o Kremlin tinha esperado uma contrarrevolução generalizada e espontânea nas zonas de língua russa (um precedente para a ilusão de que estas populações saudariam a invasão este ano). Mas isto só aconteceu de forma limitada no Donbass, e, mesmo aí, só sustentada com o apoio semi-clandestino das tropas russas.
Moscovo apoiou os rebeldes do Donbass, mas também assinou o acordo de Minsk II de 2015, segundo o qual o Donbass seria incorporado na Ucrânia com garantias de plena autonomia dentro desse país. O objetivo de Moscovo era que a região atuasse então como uma força de defesa dos interesses do Estado russo e da posição da minoria russa dentro da Ucrânia. Reconhecendo isto, o governo ucraniano, apesar de ter assinado o acordo de Minsk, recusou-se a alterar a constituição para garantir a autonomia da região. A Rússia, por seu lado, não tomou quaisquer medidas para desarmar os rebeldes.
Ao mesmo tempo que procurava influenciar a Ucrânia como um todo, Moscovo anexou também a Crimeia, que tinha sido parte da República Soviética Russa até ser transferida para a Ucrânia por decreto soviético, em 1954. Esta anexação contradizia completamente o objetivo de manter a influência russa na Ucrânia como um todo, o que dependia de manter o maior número possível de russos dentro da Ucrânia.
A anexação da Crimeia e o conflito em curso no Donbass ajudaram as autoridades de Kiev a mobilizar o nacionalismo ucraniano contra a Rússia. Os laços económicos com a Rússia foram cortados. Com a ajuda do Ocidente, o equipamento, a formação e a moral do exército ucraniano foram amplamente melhorados e foi introduzida uma série de leis que restringiram grandemente o papel da língua russa na educação, cultura e vida pública.
No Verão de 2021, o Kremlin temia que a Ucrânia se afastasse irremediavelmente da Rússia. A estratégia de Putin em resposta foi anunciada no seu ensaio de Julho de 2021, "Sobre a unidade histórica dos povos ucraniano e russo", no qual defendeu a unidade histórica de ambos os povos, denunciou tanto o nacionalismo ucraniano como os comunistas russos pela criação de uma república ucraniana soviética separada e escreveu que a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia. Contudo, também levantou reivindicações territoriais, citando o seu antigo chefe, o Presidente da Câmara de São Petersburgo, Anatoli Sobchak: "As repúblicas fundadoras da União, após terem denunciado o Tratado da União de 1922, devem regressar às fronteiras que tinham antes de aderirem à União Soviética. Todas as outras aquisições territoriais estão sujeitas a discussão e negociação, uma vez que a situação no terreno foi revogada."
Putin teria sido mais honesto se tivesse acrescentado "discussão, negociações… e guerra".
Este plano de invasão foi assombrado pela mesma contradição visível, desde 2014, e também visível no ensaio de Putin. A Rússia enviou menos de 200.000 soldados, muito poucos em qualquer caso para invadir um país do tamanho da Ucrânia.
E mais importante ainda, na prossecução dos seus dois objetivos políticos contraditórios, os militares russos dividiram as suas forças igualmente entre as que tinham por objetivo capturar Kiev e as que tinham por objetivo ocupar territórios a leste e a sul. Os primeiros visavam subjugar ou substituir o governo ucraniano e transformar toda a Ucrânia num Estado-cliente russo; os segundos, confiscar o máximo possível de território de língua russa no leste e no sul.
Em grande parte, como resultado da prossecução simultânea dos dois objetivos e da divisão das suas forças desta forma, o governo russo falhou completamente o seu primeiro objetivo, e, em grande parte, o segundo. A 29 de março, o governo russo anunciou que estava a retirar as suas forças dos arredores de Kiev; e, em vez de uma marcha triunfal através da Ucrânia oriental e da costa do Mar Negro, o exército russo foi reduzido a uma guerra de atrito para capturar pequenas cidades no Donbass.
Além disso, este fracasso inicial minou fatalmente os objetivos políticos da guerra. A capacidade da Rússia para atrair pessoas do leste e do sul da Ucrânia dependia de forma crítica de uma vitória rápida e indolor. Em vez disso, a Rússia só conseguiu capturar cidades na região reduzindo-as a escombros ao longo de meses de luta e a invasão tem sido amargamente denunciada pela maioria das elites locais.
No entanto, a Rússia parece agora determinada a incorporar o máximo possível deste território na Rússia. Serão realizados referendos rígidos, mas o pressuposto básico parece ser que a população se instalará calmamente sob o domínio de Moscovo, o que pode ser tão ilusório como a análise pré-invasão da opinião ucraniana feita pelo Kremlin.
A nomeação do antigo primeiro-ministro, Sergei Kiriyenko, como governador de facto de dois territórios conquistados por Putin é indicativa dos planos russos. Kiriyenko era anteriormente o chefe de estratégia política interna de Putin.
Não há dúvida de que o governo russo continua a querer confiscar todas as partes da Ucrânia que falam principalmente russo, incluindo toda a costa ucraniana. Contudo, dadas as perdas sofridas pelo exército russo e o ritmo lento dos seus progressos, esta perspetiva parece cada vez menos provável, em termos militares.
Portanto, é possível que, se Moscovo conseguir conquistar toda a província de Donetsk (tal como acabou de conquistar toda Lugansk), pare e ofereça um cessar-fogo, mas com as áreas limitadas conquistadas pela Rússia a permanecerem em mãos russas. Tal resultado seria um duro golpe para a Ucrânia, mas também um duro golpe para a Rússia, pois o Kremlin esperava conquistar muito mais.