Bruno Magalhães
Direto da Polônia, Bruno Magalhães escreve as primeiras impressões sobre o impacto da invasão russa à Ucrânia no país.
Quem chega a capital da Polônia imediatamente percebe os sinais da guerra no país vizinho. Bandeiras da Ucrânia nas ruas e nos carros, cartazes escritos em ucraniano, posters e pixações contra Putin por todos os lados, entre outros exemplos, refletem o enorme fluxo de refugiados ucranianos. Os dados oficiais indicam que 4.7 milhões de ucranianos já saíram de seu país após o início da invasão russa, sendo mais de 2 milhões com destino à Polônia.
Nas ruas de Varsóvia esses números se transformam em pessoas chegando a todo momento nos postos de atendimento na estação Warsawa Centralna e nos diferentes centros de acolhimento do governo, da igreja e de outras organizações como ONGs ou mesmo partidos políticos como o Lewica (“A Esquerda” em polaco, principal partido social democrata do país). As longas filas formadas para distribuição de comida durante a noite, com termômetros marcando 2º C, a distribuição de roupas e a gratuidade para refugiados no transporte público buscam amenizar a dramática situação das famílias dos idosos, mulheres e crianças que chegam à cidade.
Um dos vários exemplos é o de Anna, da cidade Smila, uma jovem mulher atendida em um destes postos com seu filho pequeno. Na Polônia já há alguns dias, ela buscava ajuda para receber outros parentes que chegariam à Varsóvia em breve. Mesmo com a dificuldade de comunicação, ela insiste que nunca pensou em ter que sair de sua casa e até poucos dias antes da invasão não acreditava que a guerra começaria. Porém, com o avanço das tropas russas, ela fugiu primeiro para a região oeste do país e algumas semanas depois cruzou a fronteira para a Polônia.
Histórias voluntárias
Além dos refugiados, se percebe também o grande número de voluntários estrangeiros. Jonathan é um jovem que veio de Los Angeles e acaba de voltar da Ucrânia pela segunda vez no último mês. Participando de comboios de ajuda humanitária realizados por uma organização francesa, ele diz que a situação em Lviv (cidade grande mais próxima da fronteira polonesa) é bastante tranquila, com hotéis e cafés abertos, e que o fluxo de refugiados diminuiu bastante após o recuo do exército russo nos arredores de Kiev. Ele teme que esta relativa calma seja apenas aparente, diz que Putin prepara uma nova ofensiva ainda mais violenta e se preocupa com a diminuição do fluxo de voluntários. “Na fronteira tem mais jornalistas que voluntários” diz de forma exagerada. Ele não votou nas últimas eleições americanas, não tem religião e veio para a Polônia com recursos próprios.
Outro caso interessante é o de Ali, um sorridente fotógrafo malaio pai de quatro filhos que acabou de chegar em Varsóvia. Ele está de partida para a Ucrânia pela primeira vez e planeja ficar um mês no país, tirando fotos e ajudando nos comboios. Se preocupa bastante com a obrigação de informar a embaixada da Malásia sobre seus planos porque seu país e a Ucrânia tem péssimas relações diplomáticas depois da suposta derrubada por engano do voo Malaysia 17 pelo exército ucraniano em 2014*. Ele não informará a embaixada: “Não foram as crianças ucranianas que derrubaram aquele avião e eu me senti tocado para vir ajudar quando começou a guerra. Vão me chamar de traidor por levar remédios para as crianças?”, pergunta este muçulmano que não se interessa por política.
Centro de atendimento para refugiados ucranianos
A ideia de que a Ucrânia provocou esta guerra é uma mentira que soa quase ofensiva para quem a houve pela cidade. “Putin é um ditador, ele é o nazista nessa história” é o que diz Antoni, um jovem polonês que veio do interior para ajudar como intérprete. Interessado por política, ele é taxativo quando questionado sobre a extrema-direita ucraniana: “A Alemanha tem mais nazistas do que a Ucrânia e lá eles ganham eleições”. Ele não participa de nenhuma organização política, se considera um democrata radical e diz que se a Polônia não estivesse na União Européia seria mais um alvo na mira de Putin.
A contradição da direita polonesa
A invasão russa também trouxe à tona as grandes contradições do Lei e Justiça (PiS), partido de direita do presidente Andrzej Duda que tem laços com figuras como Marine Le Pen, Viktor Orbán e Matteo Salvini. Profundamente conservador, com uma agenda anti-trabalhista, anti-imigração e contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, Duda é visto como pró-Putin na política polonesa e a guerra aprofundou o desgaste de partido pelo impacto da invasão russa no país.
O PiS também se alinhou profundamente aos EUA durante o governo de Donald Trump, inclusive com intenções de criar uma nova base militar no país que seria chamada de “Forte Trump”. Tomando posição clara no conflito entre os chamados “europeístas” e “nacionalistas”, Duda já denominou a União Européia como uma “comunidade fantasma” e em diversas ocasiões se alinhou à extrema-direita do continente ao mesmo tempo em que atacou violentamente a oposição interna de centro e de esquerda.
Cartaz nas ruas de Varsóvia
Eleito denunciando a politica de “portas abertas” aos refugiados promovida pela Alemanha de Angela Merkel, o PiS foi obrigado a mudar sua orientação sobre o tema com a guerra e hoje abre as portas para os refugiados ucranianos. Mas esta mudança não é tão profunda como parece, afinal imigrantes da África e do Oriente Médio continuam sendo barrados nas fronteiras polonesas e refugiados sírios e afegãos continuam sendo presos e deportados para o vizinho Belarus. Também há relatos de que refugiados ucranianos chegando a Polônia através da Moldávia estariam recebendo um tratamento bem pior. Esta política racista torna ainda mais evidente a posição desta extrema-direita que cresce no cenário político europeu.
A derrota de Trump e a guerra podem ter promovido um giro no governo polonês, que hoje acena a Biden como líder da OTAN contra o expansionismo russo. Mas o perigo do imperialismo russo ainda parece mais evidente para a população polonesa do que para seu governo, contribuindo para uma possível mudança na dinâmica política do país nos próximos anos. A Polônia é o país onde a participação na União Européia tem a maior popularidade e, apesar de incorreta esta posição é facilmente compreensível tendo em vista a localização geopolítica do país.
A contradição que enfrenta a direita polonesa é interessante porque desmente toda a narrativa – infelizmente comum no Brasil – de que a invasão russa seria parte de um processo de “desnazificação” da Ucrânia. Enquanto um setor significativo da esquerda mundial lava as mãos perante o avanço dos tanques e bombardeiros russos, a extrema-direita europeia até ontem via com bons olhos o exemplo nacionalista do regime de Putin. Nesse contexto, a esquerda polonesa tem um grande desafio à enfrentar, espremida entre os interesses imperialistas ocidentais, as alternativas de extrema-direita em seu próprio país e o imperialismo russo em suas fronteiras.
- Investigações conduzidas tanto pelo Ministério Publico holandês como por uma comissão internacional estabeleceram com provas materiais que o MA17 foi derrubado por um míssel russo atirado da área do Donbass controlada pelos separatistas. 4 individuos (três russos e um ucraniano) estão sendo alvo de um mandato de prisão internacional e serão condenados à revelia a prisão perpétua pela Corte Europeia de Direitos Humanos.
Bruno Magalhães é historiador, editor da Revista Movimento e membro da Comissão Internacional do Movimento Esquerda Socialista (MES/PSOL).